sábado, 8 de dezembro de 2012

Também é meu lugar - anexo 1

Um dos muitos professores legais que tive realizou um trabalho anual com a turma que nada tinha com a matéria, pois tratava-se de um trabalho com efeitos em nossa formação - sob todos os aspectos, mas sobretudo naquele que desperta uma consciência "crítica" sobre o mundo. O exercício era simples: um grupo de três pessoas devia ter um caderno em branco e nele cada semana alguém do grupo devia escrever sobre algum artigo de jornal - ou na falta de algo interessante, escrever sobre uma coluna específica de certo jornal que tratava de assuntos correlatos a disciplina -, que deveria estar anexado ao caderno antes do texto; deveria ser um rodízio entre os integrantes do grupo, mas a ordem em si não era algo inflexível. O cumprimento do trabalho semanal acrescia pontos, que ao final do ano seriam computados. Sem dúvida alguma este foi o melhor trabalho escolar que já realizei.
 Apesar das notas em níveis de excelência que obtive em toda a minha vida escolar e do apelido de "CDF" que me acompanhou um bom tempo, eu nunca fui uma aluna realmente estudiosa. Ninguém que acompanhou minha infância vai concordar com isto. Eu era magra, miúda, educada, discreta, quase um projeto de lady e com boas notas. "Uma menina muito inteligente." pra usar uma das frases que mais ouvi na vida. A verdade é que eu tenho memória visual e consegui lembrar bem as anotações do caderno, do quadro, os trejeitos dos professores ao explicar um assunto, a imagem de algum colega ao tirar dúvidas etc. na hora da prova. Junto disso sempre fui determinada em alcançar bons níveis, em nunca subestimar a minha capacidade. Meu pai era um semi alfabetizado e, no entanto, podia construir uma casa inteira, fazer a prova dos nove, calcular qualquer porcentagem de cabeça. (Até hoje eu só sei fazer porcetagem com regra de três.) Porque eu conseguiria algo menor do que ele conseguiu com a oportunidade que ele nunca teve? Eu prezava pelos meus bons resultados a  ponto de ter tido algumas crises de choro por acreditar seriamente que havia falhado em alguma avaliação. Não era um dever, mas tinha sua importância. Por esse motivo também nunca gostei de "cola" e poucas vezes me submeti a ela. Arcar com todas as consequências dos atos escolhidos conscientemente sempre foi uma questão de honra.
Mas aquele trabalho era desafiador, não era nada para lembrar, para repetir. Era um espaço em que eu poderia falar o que pensava sobre o mundo, sobre a vida, as pessoas, as coisas e, claro, com isso não deixava de falar de mim, indiretamente. O professor corrigia os textos e, embora não havia uma escala de valor que interferia na pontuação, comentava aqueles que mais lhe chamara a atenção pelo tema, pela análise e às vezes também pela afinidade de ideias. Ao final do texto quase sempre acompanhava algumas palavras de estímulo e uma certa avaliação com as palavras-chaves que tanto conhecemos, como por exemplo "bom". Com isso, eu tinha estabelecido uma meta: alcançar o maior número de "Excelentes" de toda a turma. 
Isto soa um pouco esnobe, arrogante, mas, creia, o sentimento não era desta ordem. Para o restante da turma aquele era mais um trabalho e para mim era a conquista de um espaço até então inexistente. Alcançar a meta significava que eu tinha me superado, que estava a altura do desafio. Não lembro bem como foi o resultado geral, só lembro que eu não tinha alcançado a minha meta - fiquei em segundo lugar - e que aquilo me chateou um pouco um certo tempo. Ficou o gosto da frustração, mesmo hoje. De qualquer modo também tinha compreendido que o professor tinha seus pontos de vista e que nós, às vezes, discordávamos. Afinal, ele fez inúmeros elogios ao texto que uma amiga fez defendendo as características de masculinidade no homem ao comentar um artigo sobre os metrossexuais. Eu achei aquilo um pouco estúpido e machista e me causou certo desapontamento. 
Bom! O fato é que num dos seus comentários sobre algum dos meus textos, ele riu com gentileza e respeito e disse carinhosamente que eu era "ingênua e romântica". Aquilo caiu sobre mim e, como qualquer fato de injustiça da vida, causou-me indignação, que não pude conter. Senti como um insulto, mesmo que a intenção fosse outra. Ora, de fato existiu uma de mim assim, mas isso era coisa do passado. Eu já tinha amadurecido e enterrado aquela menina "ingênua e romântica". Hoje percebo o quanto essas "coisas" podem conviver, o quanto parte daquela indignação era só a dor que a verdade jogada na cara pode causar. Transborda em mim uma ingenuidade e um romantismo na consciência do mundo, que não deixa de vê-lo como o é e nem de tomar uma posição crítica diante dele. Não é fácil de carregar esta dupla, que é muito mais fraqueza que força, mas que me rende sempre um certo encanto ao permitir que eu veja o que pode ser quando muitos já perderam as esperanças.

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Ao professor Walmir com respeito, carinho e admiração pelas discordâncias e pela precisa visão.

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Ainda guardo os três cadernos que compunham o trabalho.