terça-feira, 20 de novembro de 2012

Meu lugar - parte 2

    Só na faculdade eu aprendi que a história de uma pessoa é um valor para conhecê-la. Foi o filósofo quem me ensinou tamanha lição. Depois de conhecer a minha história, me chama carinhosamente de figurinha.



Das boas lembranças que tenho de meu pai quase todas são dos meus primeiros tempos de vida. De quando vivíamos na primeira casa. Bateu-me uma única vez na vida e foi lá. Morreu de arrependimento, acho que o primeiro grande arrependimento que teve comigo. Era amável, apesar de todo cansaço da labuta da vida. Era ele quem me tirava dos castigos que minha mãe me impunha por não comer legumes. Sempre que possível trazia algum doce para mim e meus irmãos. Brincava conosco entre um intervalo e outro do trabalho da rua e também da casa.
Na segunda casa, os tempos já eram outros. Em 1993, morávamos na metade da casa que meu pai construiria por cerca de 10 anos. Ficava num ex-sítio que foi loteado para divisão da herança entre os filhos do falecido dono. Chegamos naquele lugar quando tinha apenas 3 casas além da nossa. O dinheiro era pouco, havia uma metade inteira da casa para construir, 3 filhos para criar. Agora com experiência e conhecimento em todos os campos da construção, meu pai foi trabalhar como autônomo para tirar uma renda maior. De fato isso aconteceu e nunca mais meu pai voltou ao trabalho formal, embora não garantiu a nós uma vida de riqueza.
Nesses 10 anos, de repente o amor converteu-se em comida na mesa. Era adolescente e meu pai não sabia absolutamente nada da minha vida ou da dos meus irmãos. Para dizer melhor, ele procurava saber do essencial: há inexistência de possibilidade para engravidarmos cedo e, no caso do meu irmão, para não se envolver com drogas ou crime. As tensões e conflitos de todos com ele só aumentavam. Mas isso era só dentro de casa, na rua era outra história.
Todos, sem exceção, diziam que o Chapolin ou Guaxinin - dois dos muitos apelidos que ele tem - era o cara mais 100% da região. Estava sempre alegre, ajudava sempre que podia e nunca deixava faltar uma festa que não incorporasse todos os vizinhos. Era com certeza o melhor de todos os vizinhos. Às vezes, só, o som alto, promovido por uma dupla de duas caixas de som acopladas do tamanho de uma geladeira cada dupla, era alto demais na madrugada. Além disso, ele foi o principal promotor da nossa tradicional festa de São João na rua. Responsável dentre outras coisas pela construção da fogueira, que nunca foi menor que 3 metros de altura.
Conviver com essa dualidade era fatal para mim, meus irmãos e minha mãe, pois cada crítica nossa era desacreditada. E tudo seguiu de mal a pior dentro de casa até culminar num difícil, agressivo, doloroso processo de separação. A segunda casa sem dúvida concentra o conjunto das lembranças ruins que tenho de meu pai.

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Era noite de sexta-feira. Eu estava com minha mãe, irmão e priminha na sala assistindo TV. Minha irmã estava sentada na calçada no portão de casa com seu primeiro namorado e quase todos os nossos amigos da rua, crescidos com a gente. Meu pai estava na barraca do Pereira bebendo com os amigos dele. Num certo momento, entrou em casa e andando falou para minha mãe que não gostava daquele tumulto na frente de casa e que era para minha irmã entrar, que quando voltasse para casa era para todos estarem lá, dentro. Minha mãe retrucou que aquilo não tinha nada demais, o portão estava aberto e que da sala ela estava de olho. Com cara feia, apenas saiu.
Algumas horas depois voltou, expulsou todo mundo da frente da nossa casa e botou minha irmã para dentro. Indignada minha irmã gritou à altura, falou da sua falta de educação com os amigos, que eram filhos de seus amigos, e que com os velhos bêbados engraçadinhos que ficavam de gracinha para o nosso lado ele não se preocupava. Não pensou duas vezes, pegou o chinelo e foi em direção da minha irmã para bater-lhe na cara. Lembro bem de muitos gritos, eu tentando detê-lo, meu irmão voando no seu pescoço para proteger a minha irmã e meu irmão voando contra a parede, onde se machucou. Foi nesse momento que gritei que ele iria matar todo mundo junto e apontei para o meu irmão com sangue na testa. Um minuto de silêncio quase completo, salvo pelas respirações ofegantes de todos. Meu irmão chorava. Meu pai tentou se aproximar dele para ver o corte e tentou se desculpar com meu irmão justificando que foi uma reação natural à unhada que recebera dele no pescoço. Também havia um pouco de sangue ali, mas meu irmão ainda era uma criança - não mais que 12 anos.Se trancou no quarto e nós todos tentamos nos recuperar das lágrimas, da dor, da noite de horror.

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Na escola, em que estudei dos 7 aos 14 anos, era comum que os alunos da 8ª série realizassem festas na escola para arrecadar dinheiro para a formatura. A minha turma organizou quatro festas ao longo do ano que entraram para a história da escola. Eu tinha 15 anos e a primeira festa da turma seguinte iria acontecer. Já estudava em outra escola acompanhada de amigos antigos e também de novos. Todos estariam lá, no Baile do Blackout. 
Lá em casa, pedir algo difícil de ser consentido sempre funcionou no esquema de empurra. Minha mãe dizia "Fala com seu pai." e meu pai respondia "Fala com sua mãe.".  Nesse empurra-empurra meu pai deixou eu e minha irmã irmos. Havia pedido com antecedência para não haver a desculpa do "em cima da hora?!". E eis que o dia chegou. Estava extasiada com o reencontro de toda a turma antiga e o encontro com os novos amigos. Era também uma lavagem de alma naquele lugar que passei 7 anos da minha vida, em que cresci junto com tudo ali.
Já estávamos prontas e saindo de casa, quando meu pai perguntou para onde iríamostão arrumadas. Estranhei a pergunta, mas respondi sem preocupação - talvez ele tivesse se esquecido da data. Mal respondi e ele perguntou se a minha mãe não iria junto. Respondi que não. Ele na mesma hora chamou a minha mãe e mandou a gente entrar, minha mãe tentou intervir, mas sem efeito. Estava puta, triste e chateada por ouvir tanta besteira sobre um possível "prejuízo" futuro com a gente saindo sozinha. Aquilo me revoltava profundamente. Ele não tinha ideia de quem eu era, o que eu pensava. Vivia para meus estudos porque tudo que mais quis na vida era ter minha independência, não dava a mínima para a maioria dos garotos porque sabia que eram imaturos e que só poderiam ser, no melhor dos casos, bons amigos alegres e engraçados. Tinha 15 anos e nunca havia namorado de verdade, nem escondido. Dava para contar com sobra nos dedos de uma mão quantos beijos havia dado. Não podia ser mais terrível do que nem ter liberdade para ver os amigos.
Nessa época, minha prima, sobrinha direta do meu pai, que era 10 anos mais velha que eu morava conosco junto com sua filhinha. Esteve solidária a nossa causa e se ofereceu para nos acompanhar na festa. meu pai consentiu e ficou combinado também que às 23:30, quando terminaria a festa, iria nos buscar. Rosto limpo, ainda um pouco inchado, fomos à festa. Uma luz tinha se acendido e nem tudo estava perdido.
A festa estava ótima e eu me divertindo muito até que o feitiço da fada madrinha durou menos que o previsto. Meu pai apareceu na festa às 22h e para nosso azar ainda chegou quando a quadra da escola estava iluminada apenas por uma das lâmpadas. Já que o tema era blackout, as luzes se apagavam por 5 minutos mais ou menos num intervalo a cada 15 ou 20 minutos - como a festa era na escola, não podia ficar como no baile. Mas aquilo foi suficiente para o horror do meu pai, que reclamou com a responsável da escola, presente no local, e nos levou embora. Foi todo o caminho reclamando do absurdo que era aquilo e tantas coisas que prefirimos fingir não ouvir.
No meio do caminho decidiu passar num bar de um amigo, que ficava mais além da nossa casa, só para comer um pouco do churrasco de lá. Chegamos no lugar e ficamos quase todo o tempo dentro do carro alimentando nosso ódio. O lugar era um botequim qualquer com caras quaisquer, bêbados e mulheres (tristes) tão vazias de si. Ficamos ali até às 23:30 e depois fomos pra casa.

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Era um domingo de sol, com tempo agradável. Meu irmão estava brincando na rua com os amigos. Meu pai estava trabalhando na oficina, que ele tinha no fundo da casa. Como de costume, o carro estava estacionado embaixo da árvore, as portas da garagem abertas e eu e minha irmã circulávamos entre a rua e a casa, conforme os eventos do dia. Minha mãe devia estar arrumando a casa ou descansando. Alguém chamou no portão e minha atendeu, mas com meu pai que a vizinha da rua de baixo soltou a reclamação. "Seu filho estava com Marlon roubando goiaba no meu quintal." A cara do meu pai ficou vermelha na hora. Ele brigou com a vizinha por fazer uma reclamação tão besta como essa, mas também tratou logo de encontrar meu irmão. Como ele foi interrompido no trabalho que realizava, havia atendido a vizinha segurando um bocado de fio na mão. Quando meu irmão chegou em casa, foi com o fio mesmo que estava com ele, que meu pai o repreendeu. Receber a queixa de um roubo praticado por seu filho era com certeza o maior do desaforos e desgostos para ele. meu irmão gritou muito e minha mãe não ousou intervir, por mais que nela doesse também. Os fios machucaram um pouco as costas do meu irmão.

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Ele era autoritário, distante, egoísta, insensível, bronco, hipócrita e machista.

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Sempre soube que era filha de retirantes, minha mãe do sul e meu pai do nordeste brasileiro. Apesar disso, só aos poucos fui descobrindo o que isso significava, que caminhos foram percorridos até aquele encontro no Rio de Janeiro que formou a família Santos com Carioca oculto.
A primeira vez que me deparei com a história de meu pai, tinha uns 11 anos. Nós fizemos uma viagem de família para a casa da minha avó, no interior da Paraíba. Não só nós fomos, mas também meu tio Bil, sua esposa e seu filho mais novo, e minha tia Naíde e suas filhas. Em outras palavras, uma boa representação dos filhos que vivem no sudeste. Aquela viagem mudou muita coisa na minha vida em relação a minha história, mesmo que algumas fichas só vieram a cair muitos anos depois. Na ocasião mesmo, a viagem significou uma completa inadaptação de minha parte naquele universo tão estranho e primitivo. E, embora a cidade do Rio de Janeiro para mim era um território quase totalmente desconhecido, nunca me senti tão carioca quanto naqueles 30 dias que passei na roça.
Como eu passava muito mal ao andar de carro, passei a viagem quase toda meio dopada pelo efeito do remédio para enjôo. Mas ao longo dos três dias de estrada a paisagem já se transformava completamente. Lembro que o primeiro choque cultural grande que tive foi à beira da travessia do rio São Francisco, quando paramos para tomar café num "bar". O cardápio do café era bem típico: carne de bode com macaxeira, manteiga de garrafa, cuzcuz de milho, pão e leite. Queria morrer ao ver aquilo. De outro lado, a paisagem daquele rio tão grande, que mais parecia o mar de tão extenso, nada tinha com ilustrações do livro da escola. Era o mundo novo ao alcance das minhas mãos, atrativo e profundamente assustador.
Chegamos em Campina Grande no início da noite. Dali para Pilões era mais um bocado de chão, boa parte em estrada de terra. O caminho era totalmente escuro e começou a chover forte. Até hoje me pergunto como meu pai encontrou o caminho depois de tantos anos sem percorrê-lo. Numa parte da estrada o aguaceiro da chuva tinha se juntado com o do riacho que passava perto e o medo de ficarmos presos ali, no melhor dos casos, foi enorme. Passamos. Mais a frente meu pai indicava o antigo engenho de cana-de-açúcar no qual ele e alguns tios trabalharam na juventude. Parte do que era meu pai se fez num engenho no meio do nada. Aquilo era no mínimo enigmático demais para mim.
A chuva passou e quando parecíamos estar vagando no meio do nada, viramos à direita e havia uma luz lá na frente. Era a energia elétrica que, enfim, chegara havia um mês na casa dos meus avós. Haviam sorrisos, lágrimas, abraços, apresentações, emoções. Eu conhecia pela primeira vez (ao menos com consciência) 
meus avós, alguns tios, primos e todo um universo que nenhum livro didático de estudos sociais tinha me dito que existia.
Sem TV, sem rádio, banho cedo na cacimba para nenhum guaxinim perturbar, lavar a roupa no rio que ficava no fim da ladeira, cagar na latrina, dormir com o som dos sapos pururus ao redor da casa, os morcegos passeando pelo teto, comer peixe seco e aipim no café, estar distante de qualquer coisa que pareça uma rua, um carro, uma praça. Tudo isso para uma pré-adolescente do Rio de Janeiro com seu tamagochi. Mais do que isso havia inúmeras histórias da infância pobre do meu pai, do trabalho que começara cedo, das bebedeiras do meu avô, das brigas de peixeira entre irmãos por um pedaço de macaxeira, das surras de vara, do trabalho no engenho, da partida, da luta pela sobrevivência. O olhar terno e profundo da minha avó, mãe de 14 filhos, nascida e criada na aridez da roça, no meio do nada traduzem tudo que há para sentir daquele universo, onde não há lei, nem piedade, nem pão, nem sermão, só paciência. A paciência de esperar que haverá tempo na vida em que se possa viver.

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Meu pai é erro, desconcerto, acerto, amor não convencional, luta, sobrevivência, alegria. Um pai meio troncho, mas pai.

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Nas minhas outras casas, depois da separação, meu pai reencontrou consigo mesmo. Com aquele pai que fora um dia, mais livre, mais amoroso, mais humano, com mais presença. Sempre há tempo de redenções para nós mesmos.
Nas veias dele corre meu sangue. Sou filha da luta, do labor, da insistência de viver, com todas as delícias e amarguras.
"Paraíba masculina, mulher macho sim sinhô."

domingo, 11 de novembro de 2012

Valsa de perdição

Quero fugir.
Quero me ter, reter, me esgarçar.
Quero ser não ser para me deixar ser sem amarras, barreiras e liquidez.
Quero me perder de vista para depois me encontrar perdida no meu lugar comum.
Quero seguir e não ir onde não me encontro para só então me ver distorcida, refigurada,
me ver outra.
E nessa valsa de perdição, morrer de ser.

Saudade sempre...

De toda saudade que abraça, há sempre os braços de alguém. Para todos os meus amores amados, minha saudade de amar.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Toc?

Há alguns vazios que me esvaziam completamente de graça, cor, riso, amor.
É um silêncio absorto que me devora.
Não há cifras, sentido ou significado que se possa deduzir. Tudo é possível e o impossível também é viável.
Era diferente. Parecia diferente.
E, de repente, encontro um vazio onde existia lua, boca, música, palavras, cheiro, filosofia.
É um espaço inócuo que nada tem de mim mais que um lamento.
Da minha parte sôfrega, algo há de ficar no lugar.