quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Oferta

O exercício proposto era escolher um lugar, absorvê-lo e produzir registros, do tipo que você quisesse, do tipo que o processo pedisse, permitisse. Eu logo pensei no parque, o que tem próximo a minha casa, o que fui semanas antes para o exercício de banho de sol, o primeiro depois de meses de jejum do fora que não fosse absolutamente necessário. 

A oferta era de retribuição com um sorvete, um sorvete acompanhado. Retribuição pela disponibilidade de ler e refletir e devolver pensamentos, ideias, elogios e críticas. A oferta era amigável e flexível, ainda meio inesperada. A companhia havia sido cotidiana outrora, agora era distante.

O pensamento foi unir o exercício, que também era oferta, com a oferta propriamente dita. Na segunda, o sol raiou e tudo estava confirmado. O encontro aconteceu, um pouco mais próximo do que o momento do mundo nos recomenda. Absorvia a brisa fresca, a luminosidade, a sombra, o frescor da terra que transpassava pelo tecido da canga, a vista de pessoas ao longe buscando formas de aproveitar o fora, os retalhos de grama que grudavam nas pernas, o cachorro que veio saltitante e parou para me observar. Som de vento, de passos, de conversas ao longe, de trânsito, de crianças, de cachorros, de folhas, de água. 

Dos registros, só na cabeça, o que vi, ouvi, senti. O sorvete não veio e dispensei qualquer esforço para que viesse porque esse momento do fora era precioso demais para ser coadjuvante dessa empreitada. A oferta ainda sim não se perdia porque o sorvete era pretexto de uma oferta muito mais íntima, uma oferta para tudo aquilo que extrapola a realidade pandêmica de agora, no qual o toque é interdito.

Recusei a oferta principalmente porque na maior parte do tempo eu me vi desconectada com ela, com a companhia, com o risco ou o desejo. Mas no final de tudo, quando o parque já ficava pra trás, a memória despertou preguiçosa, mas serelepe. E cada vez mais as lembranças das infinitas possibilidades de sentir através de um outro saltitavam fervorosas na minha cabeça. Era como se de repente meu corpo saísse de uma dormência e começasse a formigar. Eu podia lembrar do sabor de um aperto, dos sons do desejo, dos gestos das vontades. Ainda agora, escrevendo esse texto relato elaboração, minha boca água pelo que não foi, pelo que pode ser. 

É engraçado como toda a racionalidade, todo o esforço da cultura, de milhares de anos, se esvai com apenas uma rega no Id; rapidamente, parte de nós, parte de mim se animaliza e ignora toda lógica, toda razão, toda palavra. Quase como Gremlins, o desejo se multiplica em mil e se espalha e vai pra lugares absortos.

A oferta... a oferta é obscena. E não porque envolve sexo, mas porque é um convite para uma experiência que te faz se sentir esplendorosamente viva num contexto de morte e desterro. Como recusar?

sábado, 12 de setembro de 2020

O antigo, o velho e o melhor amor

Cresci em meio a coisas antigas e velhas. Meu pai é um fazedor e olha pra quase tudo com a pergunta no olhar "Meu filho vc já morreu mesmo ou ainda dá mais um caldo? Tá só precisando de um trato? Então, deixa comigo.". 

Eu vim aqui pra falar de amor, pra falar do meu melhor amor. Mas pra falar dele agora, prestes a completar 4 anos e 5 meses de separação e distância, eu tive que pensar no tempo. Em como desde muito nova eu aprendi que o tempo é senhor de todas as coisas, que pode fazer ruir e transformar em pó as montanhas mais rochosas ou conservá-las por milênios. Há uma diferença entre o antigo e o velho. 

Ambos remetem a uma origem num tempo anterior, mas só o velho remete a deterioração do tempo. No antigo se conserva, no velho se rui. Então, a gente percebe que o tempo pode ser ácido, mas não sempre. 

Muito das coisas que tivemos em casa foram usadas antes, receberam um trato do meu pai e passaram a ser parte da nossa família. Talvez por isso eu goste de coisas antigas, goste da ideia de memória, de guardar lembranças, de dar trato nas coisas e fazê-las viver de outro modo noutro lugar. Também por isso, talvez, eu tenha aprendido desde muito cedo a conservar as coisas, a ter no tempo um aliado e não um inimigo. A ser paciente com aquilo que precisa ruir, como uma paixão não correspondida, e a ser cuidadosa com aquilo que precisa permanecer, como as amizades. 

O meu primeiro amor, daqueles de infância, foi tão intenso e marcante e doloroso. Quase 3 anos convivendo com um misto de sentimentos decorrentes da experiência de sentir o gostinho de ser querida e depois rejeitada. Era tudo tão intenso pra mim que parecia insuperável. Mas o milagre do tempo aconteceu e eu notei que bastava paciência que tudo tem a sua hora.

O melhor amor veio fortuito com a maresia. Era despretensioso, leve, aberto e bonito. Quem via em nós outra coisa que não cumplicidade, brilho e brisa, de certo sofria de conjuntivite aguda. Mas nós tínhamos um tempo contado, não brigamos com isso. Aceitamos o que nos era possível e fizemos dele o que poderia ser feito de melhor. Tudo tem sua hora mesmo.

Como trabalhos do jardim de infância, cadernos da escola, "ursinhos" de pelúcia, tickets de programas adoráveis, rolha de uma champanhe comemorativa, aliança de um ex-casamento, dentre tantas outras coisas, guardei o meu amor e tudo o que foi fruto daquela maresia. Guardei bem guardado.

Com o tempo, a porta cedeu, arrebentou e tudo caiu. Cada lembrança, cada alegria, aconchego, identificação, carinho e cuidado está ao meu redor, desordenado. E com essa bagunça que o tempo tratou de me aprontar, percebi que meu amor não envelheceu nada, que o tempo não agiu sobre ele. O tempo passou, deveras, mas atingiu mesmo só a porta que insistia em mantê-lo quieto naquele canto. Pelo meu melhor amor, o tempo passou através. Ele completa agora 6 anos e é tão pulsante e reluzente como antes, quando nem sonhávamos em viver numa terra governada por imbecis. 

Ele é antigo e ainda muito vivo. Talvez precise só de um trato pra ser de novo noutro lugar.


sábado, 18 de abril de 2020

Ainda posso voar

Às vezes, podia ser só silêncio
Eu me sentiria leve e passageira
como quem não precisa se preocupar com o amanhã
Num dia bom, eu consigo discernir sobre o que consigo fazer
Num dia ruim, meu corpo cai letárgico
mas não adormece
Todo o controle parece ser como laçar o vento
E deveríamos estar todos entre o aqui e o agora
para ser possível um amanhã lá fora
Até soa brega, esses versos rimados
que não são poesia
porque são a verdade

Escrevo porque é como eu posso voar

domingo, 5 de abril de 2020

Ah, os românticos... ou porque vi "Diário de uma paixão"

Pense num drama! Num desses beeemmm dramáticos e que envolva amor entre um homem e uma mulher. Vai ter paixão à primeira vista? Vai! Vai ter proibição? Sim, senhora! Vai ter conspiração? Não poderia faltar... Tem sacrifício? Mais é claro! Tem morte? Tem que ter morte, né? De novo, sim! E, o amor supera tudo? Certamente! Então, tem "felizes para sempre"? Não podia faltar! Espera! É um conto de fadas? Branca de neve, talvez? Antes fosse... É um filme para adultos. Sério? Vai me dizer que você nunca viu uma comédia romântica? Esse é igual, só não tem a comédia.

A trama é a seguinte: dois velhinhos num asilo, o homem lê para a mulher uma história de um livro. Ele parece fazer esse gesto como uma forma de ajudá-la a passar o tempo ali naquele espaço. Ela parece apreciar o gesto e, curiosa, se interessa pela história narrada. A história que ele narra envolve uma mocinha rica de férias numa cidade pequena e um rapaz pobre trabalhador, mas sonhador. Quando o mocinho a vê, é paixão à primeira vista. E ele faz estripulhias para ela lhe dar uma chance. Ela cede. Logo os dois estão perdidamente apaixonados e vivendo um tórrido romance naquele verão. Os pais da mocinha, percebendo que a coisa está ficando séria, intervém. Os dois são separados, ela é levada de volta para a cidade grande. O mocinho escreve cartas de amor ao longo do primeiro ano de separação, uma por dia. A mãe da mocinha intervém mais uma vez. A vida segue, a guerra chega, a guerra passa. A mocinha se apaixona por um novo mocinho, que é aprovado pela família. O nosso mocinho do início continua com sua antiga paixão intacta e não podendo realizá-la, ele se dedica a reconstrução de um casarão, sonho antigo que tinha sido atualizado naquele verão apaixonante. A casa fica pronta, como os dois sonharam um dia, mas não preenche o seu vazio. A mocinha está prestes a se casar. Mas o destino intervém. Ele descobre ela e seu novo amor, então deixa pra lá. Logo depois, ela descobre ele e resolve ir atrás, tirar o passado a limpo antes de prosseguir com seus planos. Preciso dizer que eles revivem toda a paixão de novo? Ela tem que escolher com quem vai ficar. E a gente descobre a escolha dela junto com a velhinha do asilo que se lembra que os personagens da história são ela própria e seu marido. Antes disso, nós já sabemos que a velhinha é casada com o velhinho, que eles tem uma linda família com filhos e netos, mas que ela sofre de demência e já nãoo reconhece ninguém. O filme termina com os dois morrendo juntos, um ao lado do outro, no asilo.

Já enxugou as lágrimas? 

Sem querer parecer insensível, mas essas histórias me irritam. Real, oficial. E me irritam porque elas nos dizem um monte de coisas que só atrapalham na vida real. A primeira delas é que o amor é fruto de mágica, que exige sacrifícios, mas que sempre vence no final. A segunda é que só teremos o nosso felizes para sempre se encontrarmos quem nos complete. A terceira é que se for por amor, todo sacrifício vale a pena. 

Essa visão só nos concebe como parte de um todo, formado por duas pessoas. Mas veja bem! A gente se cria e vira gente como nós mesmos, como um. A nossa individualidade se forma a parrtir da nossa relação com os outros e não por causa dos outros. Ou seja, a maior parte da nossa vida a gente se desenvolve como um. São os nossos desejos, nossos sonhos, nossas carências. Não é a minha e de alguém estranho que aindda nem conheço. Ninguém é criado para esperar conhecer um outro específico para saber do que vai gostar, o que vai querer. E é por isso que os romances quase sempre exigem sacrifícios. Porque quando a gente coonhece alguém que nos interessa, não podemos simplesmente pegar tudo o que nos formou e jogar no lixo. Mas o discurso de que a gente s´o se commpleta com esse outro, nos obriga a abrir mão de parte de nós para ceder ao outro aquilo que acreditto que deva me completar. Percebem a complexidade disso? Porque as coisas que nos formam e nos formaram não são destacáveis e descartáveis como peças de roupas, não podemos simplesmente tirá-las e jogá-las fora. O que nós fazemos é o sacrifício inocente de reprimir parte de quem a gente é para "completar" o outro. Eu não sei se você sabe mas repressão é uma forma de violência. Não há um significado dessa palavra que não incorpore esse caráter. Então, esse ideal de amor concebe que uma dosezinha de violência faz parte. E quem é que vai medir a dose? As pessoas que estão se relacionando, ora bolas! Ah, então é simples porque as pessoas podem combinar que a dose vai ser pequena. Verdade! Elas podem. Mas quero lembrá-los que as pessoas que se relacionam não estão em posições iguais, que a sociedade definiu para cada uma posições diferentes de poder. Então, ao fim quem vai estabelecer a dose é quem tem mais poder. Pessoas, não é por acaso que relacionamenttos abusivos existem.

Um outro peso nesse ideal é essa ideia de recompensa. O amor vai fazer valer a pena. Então, a relação é toda baseada numa relação de troca e na expectativa de algo a se cumprir. Outro peso é que a nossa felicidade depende disso, depende de que dê certo. Só há possibilidade para sermos felizes numa relação em que eu suprimo parte de mim, de acordo com medidas que podem variar, e espero ser recompensado por isso.

Gente, é sério? Segunda década do segundo milênio d. C. e a gente ainda está achando bonita uma relação assim?

Eu vi o filme porque uma das pessoas que eu namorei na juventude me pediu para vê-lo e me disse que havia muito de nós no filme. Eu presumi que o filme fosse ter um tanto desse ideário de amor, mas não esperava que fosse esse pacote completo de drama. E passei o filme me perguntando "onde diabos nós estávamos ali?". Num resumão da nossa relação: nós dois éramos pobres, não houve impedimento externo para nossa relação e tampouco houve um sacrifício.

Ao longo da minha infância e adolescência eu sonhava com esse amor, esse que me levaria a um felizes para sempre. Eu era romântica, às vezes estupidamente romântica. Para se ter uma ideia: uma vez andando na rua esbarrei sem querer num cara e nosso esbarrão foi um em que nossos ombros se chocaram, nossos braços seguiram mais suave ao choque inicial e como seguíamos em direções opostas, nossos braços deslizaram um sobre o outro até nossas mãos se soltarem. Para mim aquele esbarrão foi como cena de filme. Nós tínhamos nos olhado nos olhos enquanto tudo acontecia... Eu logo criei uma linda de história de amor na minha cabeça que começou com aquele esbarrão. Eu, hoje, não lembro nada do rosto daquele cara, mas lembro da cena em câmera lenta. Perceberam as afetações? Pois bem, eu era romântica assim, tudo o que eu queria era me sentir amada. E eu só me sentia o patinho feio. Quem nunca?

Apesar disso, eu percebi logo cedo que há muito mais coisa em jogo. E mesmo sendo uma adolescente romântica eu sabia que há sacrifícios que não compensam. Porque quando a gente abre mão de parte do que somos, do que queremos, nós podemos nunca mais recuperar de volta. Na minha família não faltava exemplos de mocinhas bem criadas que na busca pelo felizes para sempre sofreram violência, deram passos que mudaram a vida delas para sempre. 

Ao longo da minha vida eu consegui em muitos momentos fazer escolhas que não me colocassem nesse lugar do sacrifício. Apesar disso, sem perceber eu sucumbi a esse ideário de amor em algum momento. E o que eu aprendi com essa experiência é que a gente precisa criar novos modelos de amar que não presumem sacrifício, repressão, violência, medo da solidão. Amar deve ser algo que a gente cria na relação com o outro por quem nós somos individualmente e em parceria, que presuma sempre a liberdade de ser e a certeza de que a felicidade é algo que só pode existir quando há amor próprio.

Então, não. Não sou a mocinha do filme. Não era antes e não sou agora. Não me chamem de menina, de garota, de moça. Eu sou uma mulher que acredita e busca construir o amor como um espaço em que a gente se sinta feliz por ser quem se é. Nada menos que isso.



Ao meu querido ex, sinto muito mas eu não participei desse filme.



quarta-feira, 1 de abril de 2020

Porque cresci numa casa com piscina e aprendi a mergulhar

Prestes a completar 7 anos, minha família e eu nos mudamos para a nossa casa. Meu pai já tinha construído metade da casa e ela estava, mesmo incompleta, apta a nos abrigar. A casa tinha dois projetos muito particulares: a oficina do meu pai e a piscina. A oficina era uma necessidade imperativa já que meu pai é mestre de obras e precisava de um lugar para trabalhar e guardar toda a sua parafernália - que ia desde as ferramentas mais básicas até a lateral de uma Brasília amarela. Quando nos mudamos, a oficina já estava pronta. Já a piscina... A piscina é outra história.

Para muitas famílias pobres ter uma piscina em casa, ainda mais não sendo de plástico, é um luxo. Para nós, eu e meus irmãos, era também. Quando nos mudamos, a piscina já estava construída, mas sem acabamento. Até então, creio que eu só havia tomado banho de piscina 1 ou 2 vezes na casa do namorado da minha madrinha. E era uma senhora piscina. Como a nossa ainda não estava pronta, cada avanço na obra era acompanhado de muita ansiedade. A banheira de ferro que tínhamos desde a casa velha, ficava cada vez mais apertada para 3 crianças se refrescarem no calor do RJ. Nós só queríamos nos divertir.

No dia em que o meu pai já tinha terminado de colocar todos os azulejos, mesmo sem o rejunte ainda devidamente instalado, ele liberou a gente de brincar na piscina. Devido às condições, ele a encheu só um pouco, só pra cobrir o fundo. E nós ficamos felizes da vida, brincando de escorregar. Eu tenho uma cicatriz no queixo fruto dessa felicidade. 

Mas e meu pai? Por que se empenhar nesse projeto de luxo com metade de uma casa para terminar? Meu pai cresceu tomando banho de rio. Ter uma piscina era como ter, de algum modo, um pedacinho da própria história nessa terra que ele nem ousava ficar mais que 3  anos. Talvez a piscina pra ele fosse o exato oposto de um luxo, fosse uma necessidade de existência. 

Pra mim, a piscina era a principal diversão das férias. Só saímos dela pra comer e ir ao banheiro, de manhã até a noite éramos só água. Eu gostava de boiar e ficar à deriva, gostava de mergulhar e sentir como a gente é leve na água. Gostava de ficar no fundo e me sentir imersa, completamente envolvida. Nadar pra mim é como um estágio de meditação, de estar só comigo mesma. Andar de bicicleta também. As duas principais atividades da minha infância.

Mas e daí que eu tive piscina em casa? E daí que eu aprendi a mergulhar. Daí que às vezes eu carrego todo esse sentimento de imersão, de profundidade, de densidade comigo. Às vezes a minha resposta pro mundo é intensa, mais do que a situação exige porque é assim que me sinto também. Imersa, profunda naquilo que poderia ser só superficial. Porque também me interessa no mundo o que não é dado, o que não é visível.  

Esses mergulhos nem sempre são relaxantes, como pode parecer. Às vezes me falta ar. Às vezes bate a paranoia do tubarão que vem te pegar, mesmo na piscina. Às vezes leva a uma emersão brusca e violenta.

 É um pouco difícil saber o equilíbrio do quão profundo se deve ir em determinadas coisas. Tenho tentado aprender.

Saudade de ter piscina em casa...

 

quarta-feira, 25 de março de 2020

Já completei 10 dias de isolamento

Nos primeiros dias de isolamento, eu praticamente só dormi e descansei. Estava exausta da rotina do novo trabalho. Precisava desesperadamente descansar. Pensei que os dias seguintes pós descanso seriam bons para eliminar algumas das pendências da casa (limpeza, pequenos consertos, decoração etc.) e também para me dedicar aos projetos paralelos que eu vinha tocando. O que se seguiu foi de um modo geral uma espécie de apatia. Consegui fazer poucas coisas dessa lista, que está longe de ser pequena. É que, aos poucos, a gente vai descobrindo que a rotina do isolamento tem as suas próprias demandas.

1. Notícias

Existe uma necessidade real de nos mantermos atualizados sobre o que está acontecendo fora de nossa casa. Mas junto com essa necessidade existe outra maior ainda que é de ter tempo para processar as informações. Isso significa filtrar a enxurrada de informações e notícias que estamos recebendo a todo momento de todos os lugares, entendê-las e conjecturar sobre o impacto das novas notícias nas nossas vidas e naqueles que estão ao redor de nós. Tudo isso leva tempo.

2. Energia

Essa situação de anormalidade, de exceção, nos põe num estado de atenção constante. Não dá para simplesmente ignorar por completo a situação, por mais que você ocupe seu cérebro com atividades. Esse estado de atenção constante exige do seu corpo uma energia que em outra situação seria exigida de outra maneira.

3. Saúde mental

Pense que você estava numa rotina em que tinha de atender demandas do trabalho, da família, da casa. Pouco tempo para dar conta de si, do estresse, das frustrações diárias, das expectativas, das carências, das emoções advindas de tudo aquilo com o qual você se relaciona cotidianamente. E aí, essa rotina muda drasticamente, traz outras demandas, mas te coloca um tempo a mais para conviver com todo esse pacote emocional, que antes podia estar sendo só negligenciado ou contido. Nesse período de isolamento, nós teremos que nos haver com nós mesmos, com nosso pacote emocional pré-isolamento e mais o bônus do pós-isolamento. Cuidar da nossa saúde mental pode ser uma exigência urgente agora.

4. Ansiedade

Esse momento é um momento de incerteza, de suspensão. Tudo o que a gente achava que aconteceria foi supenso e não há nada posto no lugar. Estamos vivendo um dia de cada vez e como enfrentamos algo terrível, as projeções seguem esse rumo porque não dá agora para ser diferente. Todo esse estado de incerteza gera medo e ansiedade, uma angústia pelo que não sabemos. E esses sentimentos são desses que se retroalimentam, quanto maior a ansiedade mais espaço para medos de todo tipo surgirem, quanto mais medo, maior a ansiedade, e que desencadeiam uma série de sintomas físicos e mentais (aumento da pressão arterial, palpitações, falta de ar, síndrome do pânico, etc.). Portanto, manter-se tranquilo diante do futuro incerto é uma exigência. 

5. Reinvenção do cotidiano

Essa é uma nova situação e, como nova, estamos estupefatos. Mas também estamos sendo empurrados a reinventar o nosso cotidiano por completo. Café da manhã, sofá, tv, internet, trabalho, estudo, computador, culinária, hora de dormir, sonhar. E não há muito manual de como a gente faz isso.
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Tanta coisa numa coisa só que a gente fica entre como faz e faz algo novo. Aos poucos, a gente vai resistindo como pode, de novo e sempre.









quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

O pior de Friends e a amizade na vida adulta

Não sou fã de Friends. Dois dos meus melhores amigos são. Assisti a série porque morando sozinha passei a ter o hábito de comer vendo alguma coisa. Dez temporadas, episódios curtos e um conteúdo leve foram características perfeitas para esse hábito. Vendo Friends, me diverti com muitas piadas, mas também passei muita raiva com o comportamento dos personagens. Minha visão sobre a série é um pouco crítica e talvez isso tenha a ver com o fato de eu só ter assistido a queridinha da TV americana depois de adulta. Vi a série já na casa dos 30.

Uma das coisas que me chamou muito atenção em Friends é como todos os personagens, sem exceção, evitam as coisas. Diante de uma situação de sofrimento, de um erro cometido, de uma irresponsabilidade ou inconsequência, a postura deles é fugir, evitar ou negar, mesmo que seja ridículo. Todos em Friends possuem a maturidade de um adolescente. E essa postura que os leva a situações absolutamente cômicas e por isso nós só rimos da série e alguma parrte de nós se identifica, todos fizemos coisas tão estúpidas quanto os personagens em algum momento da vida. Além disso, a série trabalha com um sonho adolescente, o de crescermos felizes para sempre com nossos amigos. Friends é uma série sobre um grupo de amigos adolescentes que vivem vida de adulto.

Aqui, do outro lado da tela, acontece a vida e nela a imaturidade não leva necessariamente a situações cômicas. Na vida real, a irresponsabilidade cobra preços mais altos do que apenas ser exposto ao ridículo. Ser adulto talvez seja, sobretudo, assumir responsabilidade pelas escolhas, pelas coisas ditas e feitas, pelo outro, por si. O pior de Friends pra mim é a naturalização desse comportamento adulto imaturo, irresponsável, como modelo. Pensem, por exemplo, nos muitos pais que simplesmente desaparecem ou que acham que pagar pensão é mais do que suficiente. Mas a série é sobre amizade, né?

Essa postura dos personagens que estou chamando de imatura e irresponsável se traduz, principalmente, no comportamento de fingir que está tudo bem. E isso não só em relação as questões individuais como também as questões que atravessam a relação de amizade entre eles. O que culmina, vez por outra, em confrontos sensíveis ou em longos sofrimentos "desnecessários". E, se a gente observar bem, vemos que o desfecho poderia ser diferente se fingir que está tudo bem não fosse a postura adotada.

Mas esse texto é menos sobre Friends, a série, e mais sobre a amizade na vida adulta. 

Terminei o ano com uma mega DR com uma amiga. Daquelas em que a gente grita, diz coisas duras, chora, se magoa. Uma amizade de 18 anos que não quero perder. Há 3 anos, iniciou um processo de término de amizade com outra grande amiga. Talvez tenha terminado já, talvez ainda tenha possibilidade de a gente conseguir se reencontrar. Outra amizade de mais de uma década que não gostaria de perder. Há 5 anos, perdi um amigo irmão. Lutei por ele, mas não foi o suficiente. A escolha não é só minha. Doeu, ainda dói. 

A vida adulta nos coloca desafios grandes. Quem a gente é, o que a gente quer, o que a gente faz, o que a gente precisa fazer, como a gente vive. Coisas que a gente vai resolvendo ou não ao longo do tempo e que implicam toda a nossa vida. Às vezes é pesado demais, às vezes a gente adoece, às vezes a gente consegue seguir apesar de, às vezes a gente se recolhe, às vezes a gente não aguenta e às vezes a gente descobre forças que nem sabia que existiam. No meio disso tudo estão nossos amigos, a nossa escolha daquilo que a gentte quer ter por perto. Nem sempre a escolha é consciente e, por isso mesmo, não é possível construir um felizes para sempre. Porque a gente pode escolher também não tê-los mais por perto, ainda que não saiba ou não perceba. E acontece ainda que a vida adulta está acontecendo para todo mundo ao mesmo tempo. Às vezes estar junto com alguém que está numa situação x enquanto você está na y pode ser desagradável, doloroso e até impossível, apesar de tudo o que foi construído.

Por toda essa complexidade, que é viver, penso que os amigos devem ser aquele lugar quentinho e acolhedor em que a gente não precisa fingir que está tudo bem, que a gente pode soltar a armadura e respirar, que todas as máscaras podem ser colocadas de lado, o lugar em que a gente pode ser vulnerável. Penso que os amigos devem ser o nosso ninho. Que seja o lugar em que a gente possa sentir segurança e falar o que sentimos ou dizer que "agora não dá, mas aceito abraço.". E, por isso, também deve ser o lugar que seja uma espécie de bússola. Que seja o lugar onde exista confiança e liberdade para dizer e ouvir "Amiga, você está doida! Não faz isso não." ou "Amiga, você precisa fazer isso. Estamos com você.". 

Fingir que está tudo bem e exigir dos amigos o mesmo, me parece que é construir a amizade como um lugar oposto disso. Phoebe se mudou do apartamento que dividia com a Mônica e durante dias fingiu continuar morando lá. Lidar com a Mônica não é fácil, sabemos. Mas será que a amizade deve ser esse lugar?  Como todas as relações, a amizade exige responsabilidade, cuidado, comprometimento e entrega. Como todas as relações, ela é uma construção contínua.

Ter amigos para vida, para todas as ocasiões é o que a gente talvez mais queira de Friends. E está mais do que provado que não se trata de um sonho impossível, só não acontece como mágica. Mônica e Rachel se perderam por uns anos, se reencontraram e construíram novas bases para o laço que tinham. E não se enganem, numa segunda camada, Friends apresenta também algumas dessas muitas questões grandes da vida adulta. Não se sentir amada pelos pais, ser subestimada, se sentir fracassado, insistir nos sonhos, conquistar um grande amor, reinventar uma vida.     

Eu acredito na amizade como um ninho, como um lugar em que a gente não precisa fingir que está tudo bem, como um lugar que pode me orientar quando eu estiver perdida, porque é o lugar que eu construí para me reconhecer, nas potências, nos erros, na força e na vulnerabilidade. O lugar que possa me dizer as verdades mais duras porque é o lugar que me conhece escarnada. E é o lugar que eu construí com outras pessoas e por isso o lugar que exige de mim a mesma responsabilidade que o outro assumiu.

Nada fácil, mas um lugar bonito de sentir.