sábado, 8 de dezembro de 2012

Também é meu lugar - anexo 1

Um dos muitos professores legais que tive realizou um trabalho anual com a turma que nada tinha com a matéria, pois tratava-se de um trabalho com efeitos em nossa formação - sob todos os aspectos, mas sobretudo naquele que desperta uma consciência "crítica" sobre o mundo. O exercício era simples: um grupo de três pessoas devia ter um caderno em branco e nele cada semana alguém do grupo devia escrever sobre algum artigo de jornal - ou na falta de algo interessante, escrever sobre uma coluna específica de certo jornal que tratava de assuntos correlatos a disciplina -, que deveria estar anexado ao caderno antes do texto; deveria ser um rodízio entre os integrantes do grupo, mas a ordem em si não era algo inflexível. O cumprimento do trabalho semanal acrescia pontos, que ao final do ano seriam computados. Sem dúvida alguma este foi o melhor trabalho escolar que já realizei.
 Apesar das notas em níveis de excelência que obtive em toda a minha vida escolar e do apelido de "CDF" que me acompanhou um bom tempo, eu nunca fui uma aluna realmente estudiosa. Ninguém que acompanhou minha infância vai concordar com isto. Eu era magra, miúda, educada, discreta, quase um projeto de lady e com boas notas. "Uma menina muito inteligente." pra usar uma das frases que mais ouvi na vida. A verdade é que eu tenho memória visual e consegui lembrar bem as anotações do caderno, do quadro, os trejeitos dos professores ao explicar um assunto, a imagem de algum colega ao tirar dúvidas etc. na hora da prova. Junto disso sempre fui determinada em alcançar bons níveis, em nunca subestimar a minha capacidade. Meu pai era um semi alfabetizado e, no entanto, podia construir uma casa inteira, fazer a prova dos nove, calcular qualquer porcentagem de cabeça. (Até hoje eu só sei fazer porcetagem com regra de três.) Porque eu conseguiria algo menor do que ele conseguiu com a oportunidade que ele nunca teve? Eu prezava pelos meus bons resultados a  ponto de ter tido algumas crises de choro por acreditar seriamente que havia falhado em alguma avaliação. Não era um dever, mas tinha sua importância. Por esse motivo também nunca gostei de "cola" e poucas vezes me submeti a ela. Arcar com todas as consequências dos atos escolhidos conscientemente sempre foi uma questão de honra.
Mas aquele trabalho era desafiador, não era nada para lembrar, para repetir. Era um espaço em que eu poderia falar o que pensava sobre o mundo, sobre a vida, as pessoas, as coisas e, claro, com isso não deixava de falar de mim, indiretamente. O professor corrigia os textos e, embora não havia uma escala de valor que interferia na pontuação, comentava aqueles que mais lhe chamara a atenção pelo tema, pela análise e às vezes também pela afinidade de ideias. Ao final do texto quase sempre acompanhava algumas palavras de estímulo e uma certa avaliação com as palavras-chaves que tanto conhecemos, como por exemplo "bom". Com isso, eu tinha estabelecido uma meta: alcançar o maior número de "Excelentes" de toda a turma. 
Isto soa um pouco esnobe, arrogante, mas, creia, o sentimento não era desta ordem. Para o restante da turma aquele era mais um trabalho e para mim era a conquista de um espaço até então inexistente. Alcançar a meta significava que eu tinha me superado, que estava a altura do desafio. Não lembro bem como foi o resultado geral, só lembro que eu não tinha alcançado a minha meta - fiquei em segundo lugar - e que aquilo me chateou um pouco um certo tempo. Ficou o gosto da frustração, mesmo hoje. De qualquer modo também tinha compreendido que o professor tinha seus pontos de vista e que nós, às vezes, discordávamos. Afinal, ele fez inúmeros elogios ao texto que uma amiga fez defendendo as características de masculinidade no homem ao comentar um artigo sobre os metrossexuais. Eu achei aquilo um pouco estúpido e machista e me causou certo desapontamento. 
Bom! O fato é que num dos seus comentários sobre algum dos meus textos, ele riu com gentileza e respeito e disse carinhosamente que eu era "ingênua e romântica". Aquilo caiu sobre mim e, como qualquer fato de injustiça da vida, causou-me indignação, que não pude conter. Senti como um insulto, mesmo que a intenção fosse outra. Ora, de fato existiu uma de mim assim, mas isso era coisa do passado. Eu já tinha amadurecido e enterrado aquela menina "ingênua e romântica". Hoje percebo o quanto essas "coisas" podem conviver, o quanto parte daquela indignação era só a dor que a verdade jogada na cara pode causar. Transborda em mim uma ingenuidade e um romantismo na consciência do mundo, que não deixa de vê-lo como o é e nem de tomar uma posição crítica diante dele. Não é fácil de carregar esta dupla, que é muito mais fraqueza que força, mas que me rende sempre um certo encanto ao permitir que eu veja o que pode ser quando muitos já perderam as esperanças.

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Ao professor Walmir com respeito, carinho e admiração pelas discordâncias e pela precisa visão.

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Ainda guardo os três cadernos que compunham o trabalho.


terça-feira, 20 de novembro de 2012

Meu lugar - parte 2

    Só na faculdade eu aprendi que a história de uma pessoa é um valor para conhecê-la. Foi o filósofo quem me ensinou tamanha lição. Depois de conhecer a minha história, me chama carinhosamente de figurinha.



Das boas lembranças que tenho de meu pai quase todas são dos meus primeiros tempos de vida. De quando vivíamos na primeira casa. Bateu-me uma única vez na vida e foi lá. Morreu de arrependimento, acho que o primeiro grande arrependimento que teve comigo. Era amável, apesar de todo cansaço da labuta da vida. Era ele quem me tirava dos castigos que minha mãe me impunha por não comer legumes. Sempre que possível trazia algum doce para mim e meus irmãos. Brincava conosco entre um intervalo e outro do trabalho da rua e também da casa.
Na segunda casa, os tempos já eram outros. Em 1993, morávamos na metade da casa que meu pai construiria por cerca de 10 anos. Ficava num ex-sítio que foi loteado para divisão da herança entre os filhos do falecido dono. Chegamos naquele lugar quando tinha apenas 3 casas além da nossa. O dinheiro era pouco, havia uma metade inteira da casa para construir, 3 filhos para criar. Agora com experiência e conhecimento em todos os campos da construção, meu pai foi trabalhar como autônomo para tirar uma renda maior. De fato isso aconteceu e nunca mais meu pai voltou ao trabalho formal, embora não garantiu a nós uma vida de riqueza.
Nesses 10 anos, de repente o amor converteu-se em comida na mesa. Era adolescente e meu pai não sabia absolutamente nada da minha vida ou da dos meus irmãos. Para dizer melhor, ele procurava saber do essencial: há inexistência de possibilidade para engravidarmos cedo e, no caso do meu irmão, para não se envolver com drogas ou crime. As tensões e conflitos de todos com ele só aumentavam. Mas isso era só dentro de casa, na rua era outra história.
Todos, sem exceção, diziam que o Chapolin ou Guaxinin - dois dos muitos apelidos que ele tem - era o cara mais 100% da região. Estava sempre alegre, ajudava sempre que podia e nunca deixava faltar uma festa que não incorporasse todos os vizinhos. Era com certeza o melhor de todos os vizinhos. Às vezes, só, o som alto, promovido por uma dupla de duas caixas de som acopladas do tamanho de uma geladeira cada dupla, era alto demais na madrugada. Além disso, ele foi o principal promotor da nossa tradicional festa de São João na rua. Responsável dentre outras coisas pela construção da fogueira, que nunca foi menor que 3 metros de altura.
Conviver com essa dualidade era fatal para mim, meus irmãos e minha mãe, pois cada crítica nossa era desacreditada. E tudo seguiu de mal a pior dentro de casa até culminar num difícil, agressivo, doloroso processo de separação. A segunda casa sem dúvida concentra o conjunto das lembranças ruins que tenho de meu pai.

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Era noite de sexta-feira. Eu estava com minha mãe, irmão e priminha na sala assistindo TV. Minha irmã estava sentada na calçada no portão de casa com seu primeiro namorado e quase todos os nossos amigos da rua, crescidos com a gente. Meu pai estava na barraca do Pereira bebendo com os amigos dele. Num certo momento, entrou em casa e andando falou para minha mãe que não gostava daquele tumulto na frente de casa e que era para minha irmã entrar, que quando voltasse para casa era para todos estarem lá, dentro. Minha mãe retrucou que aquilo não tinha nada demais, o portão estava aberto e que da sala ela estava de olho. Com cara feia, apenas saiu.
Algumas horas depois voltou, expulsou todo mundo da frente da nossa casa e botou minha irmã para dentro. Indignada minha irmã gritou à altura, falou da sua falta de educação com os amigos, que eram filhos de seus amigos, e que com os velhos bêbados engraçadinhos que ficavam de gracinha para o nosso lado ele não se preocupava. Não pensou duas vezes, pegou o chinelo e foi em direção da minha irmã para bater-lhe na cara. Lembro bem de muitos gritos, eu tentando detê-lo, meu irmão voando no seu pescoço para proteger a minha irmã e meu irmão voando contra a parede, onde se machucou. Foi nesse momento que gritei que ele iria matar todo mundo junto e apontei para o meu irmão com sangue na testa. Um minuto de silêncio quase completo, salvo pelas respirações ofegantes de todos. Meu irmão chorava. Meu pai tentou se aproximar dele para ver o corte e tentou se desculpar com meu irmão justificando que foi uma reação natural à unhada que recebera dele no pescoço. Também havia um pouco de sangue ali, mas meu irmão ainda era uma criança - não mais que 12 anos.Se trancou no quarto e nós todos tentamos nos recuperar das lágrimas, da dor, da noite de horror.

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Na escola, em que estudei dos 7 aos 14 anos, era comum que os alunos da 8ª série realizassem festas na escola para arrecadar dinheiro para a formatura. A minha turma organizou quatro festas ao longo do ano que entraram para a história da escola. Eu tinha 15 anos e a primeira festa da turma seguinte iria acontecer. Já estudava em outra escola acompanhada de amigos antigos e também de novos. Todos estariam lá, no Baile do Blackout. 
Lá em casa, pedir algo difícil de ser consentido sempre funcionou no esquema de empurra. Minha mãe dizia "Fala com seu pai." e meu pai respondia "Fala com sua mãe.".  Nesse empurra-empurra meu pai deixou eu e minha irmã irmos. Havia pedido com antecedência para não haver a desculpa do "em cima da hora?!". E eis que o dia chegou. Estava extasiada com o reencontro de toda a turma antiga e o encontro com os novos amigos. Era também uma lavagem de alma naquele lugar que passei 7 anos da minha vida, em que cresci junto com tudo ali.
Já estávamos prontas e saindo de casa, quando meu pai perguntou para onde iríamostão arrumadas. Estranhei a pergunta, mas respondi sem preocupação - talvez ele tivesse se esquecido da data. Mal respondi e ele perguntou se a minha mãe não iria junto. Respondi que não. Ele na mesma hora chamou a minha mãe e mandou a gente entrar, minha mãe tentou intervir, mas sem efeito. Estava puta, triste e chateada por ouvir tanta besteira sobre um possível "prejuízo" futuro com a gente saindo sozinha. Aquilo me revoltava profundamente. Ele não tinha ideia de quem eu era, o que eu pensava. Vivia para meus estudos porque tudo que mais quis na vida era ter minha independência, não dava a mínima para a maioria dos garotos porque sabia que eram imaturos e que só poderiam ser, no melhor dos casos, bons amigos alegres e engraçados. Tinha 15 anos e nunca havia namorado de verdade, nem escondido. Dava para contar com sobra nos dedos de uma mão quantos beijos havia dado. Não podia ser mais terrível do que nem ter liberdade para ver os amigos.
Nessa época, minha prima, sobrinha direta do meu pai, que era 10 anos mais velha que eu morava conosco junto com sua filhinha. Esteve solidária a nossa causa e se ofereceu para nos acompanhar na festa. meu pai consentiu e ficou combinado também que às 23:30, quando terminaria a festa, iria nos buscar. Rosto limpo, ainda um pouco inchado, fomos à festa. Uma luz tinha se acendido e nem tudo estava perdido.
A festa estava ótima e eu me divertindo muito até que o feitiço da fada madrinha durou menos que o previsto. Meu pai apareceu na festa às 22h e para nosso azar ainda chegou quando a quadra da escola estava iluminada apenas por uma das lâmpadas. Já que o tema era blackout, as luzes se apagavam por 5 minutos mais ou menos num intervalo a cada 15 ou 20 minutos - como a festa era na escola, não podia ficar como no baile. Mas aquilo foi suficiente para o horror do meu pai, que reclamou com a responsável da escola, presente no local, e nos levou embora. Foi todo o caminho reclamando do absurdo que era aquilo e tantas coisas que prefirimos fingir não ouvir.
No meio do caminho decidiu passar num bar de um amigo, que ficava mais além da nossa casa, só para comer um pouco do churrasco de lá. Chegamos no lugar e ficamos quase todo o tempo dentro do carro alimentando nosso ódio. O lugar era um botequim qualquer com caras quaisquer, bêbados e mulheres (tristes) tão vazias de si. Ficamos ali até às 23:30 e depois fomos pra casa.

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Era um domingo de sol, com tempo agradável. Meu irmão estava brincando na rua com os amigos. Meu pai estava trabalhando na oficina, que ele tinha no fundo da casa. Como de costume, o carro estava estacionado embaixo da árvore, as portas da garagem abertas e eu e minha irmã circulávamos entre a rua e a casa, conforme os eventos do dia. Minha mãe devia estar arrumando a casa ou descansando. Alguém chamou no portão e minha atendeu, mas com meu pai que a vizinha da rua de baixo soltou a reclamação. "Seu filho estava com Marlon roubando goiaba no meu quintal." A cara do meu pai ficou vermelha na hora. Ele brigou com a vizinha por fazer uma reclamação tão besta como essa, mas também tratou logo de encontrar meu irmão. Como ele foi interrompido no trabalho que realizava, havia atendido a vizinha segurando um bocado de fio na mão. Quando meu irmão chegou em casa, foi com o fio mesmo que estava com ele, que meu pai o repreendeu. Receber a queixa de um roubo praticado por seu filho era com certeza o maior do desaforos e desgostos para ele. meu irmão gritou muito e minha mãe não ousou intervir, por mais que nela doesse também. Os fios machucaram um pouco as costas do meu irmão.

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Ele era autoritário, distante, egoísta, insensível, bronco, hipócrita e machista.

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Sempre soube que era filha de retirantes, minha mãe do sul e meu pai do nordeste brasileiro. Apesar disso, só aos poucos fui descobrindo o que isso significava, que caminhos foram percorridos até aquele encontro no Rio de Janeiro que formou a família Santos com Carioca oculto.
A primeira vez que me deparei com a história de meu pai, tinha uns 11 anos. Nós fizemos uma viagem de família para a casa da minha avó, no interior da Paraíba. Não só nós fomos, mas também meu tio Bil, sua esposa e seu filho mais novo, e minha tia Naíde e suas filhas. Em outras palavras, uma boa representação dos filhos que vivem no sudeste. Aquela viagem mudou muita coisa na minha vida em relação a minha história, mesmo que algumas fichas só vieram a cair muitos anos depois. Na ocasião mesmo, a viagem significou uma completa inadaptação de minha parte naquele universo tão estranho e primitivo. E, embora a cidade do Rio de Janeiro para mim era um território quase totalmente desconhecido, nunca me senti tão carioca quanto naqueles 30 dias que passei na roça.
Como eu passava muito mal ao andar de carro, passei a viagem quase toda meio dopada pelo efeito do remédio para enjôo. Mas ao longo dos três dias de estrada a paisagem já se transformava completamente. Lembro que o primeiro choque cultural grande que tive foi à beira da travessia do rio São Francisco, quando paramos para tomar café num "bar". O cardápio do café era bem típico: carne de bode com macaxeira, manteiga de garrafa, cuzcuz de milho, pão e leite. Queria morrer ao ver aquilo. De outro lado, a paisagem daquele rio tão grande, que mais parecia o mar de tão extenso, nada tinha com ilustrações do livro da escola. Era o mundo novo ao alcance das minhas mãos, atrativo e profundamente assustador.
Chegamos em Campina Grande no início da noite. Dali para Pilões era mais um bocado de chão, boa parte em estrada de terra. O caminho era totalmente escuro e começou a chover forte. Até hoje me pergunto como meu pai encontrou o caminho depois de tantos anos sem percorrê-lo. Numa parte da estrada o aguaceiro da chuva tinha se juntado com o do riacho que passava perto e o medo de ficarmos presos ali, no melhor dos casos, foi enorme. Passamos. Mais a frente meu pai indicava o antigo engenho de cana-de-açúcar no qual ele e alguns tios trabalharam na juventude. Parte do que era meu pai se fez num engenho no meio do nada. Aquilo era no mínimo enigmático demais para mim.
A chuva passou e quando parecíamos estar vagando no meio do nada, viramos à direita e havia uma luz lá na frente. Era a energia elétrica que, enfim, chegara havia um mês na casa dos meus avós. Haviam sorrisos, lágrimas, abraços, apresentações, emoções. Eu conhecia pela primeira vez (ao menos com consciência) 
meus avós, alguns tios, primos e todo um universo que nenhum livro didático de estudos sociais tinha me dito que existia.
Sem TV, sem rádio, banho cedo na cacimba para nenhum guaxinim perturbar, lavar a roupa no rio que ficava no fim da ladeira, cagar na latrina, dormir com o som dos sapos pururus ao redor da casa, os morcegos passeando pelo teto, comer peixe seco e aipim no café, estar distante de qualquer coisa que pareça uma rua, um carro, uma praça. Tudo isso para uma pré-adolescente do Rio de Janeiro com seu tamagochi. Mais do que isso havia inúmeras histórias da infância pobre do meu pai, do trabalho que começara cedo, das bebedeiras do meu avô, das brigas de peixeira entre irmãos por um pedaço de macaxeira, das surras de vara, do trabalho no engenho, da partida, da luta pela sobrevivência. O olhar terno e profundo da minha avó, mãe de 14 filhos, nascida e criada na aridez da roça, no meio do nada traduzem tudo que há para sentir daquele universo, onde não há lei, nem piedade, nem pão, nem sermão, só paciência. A paciência de esperar que haverá tempo na vida em que se possa viver.

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Meu pai é erro, desconcerto, acerto, amor não convencional, luta, sobrevivência, alegria. Um pai meio troncho, mas pai.

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Nas minhas outras casas, depois da separação, meu pai reencontrou consigo mesmo. Com aquele pai que fora um dia, mais livre, mais amoroso, mais humano, com mais presença. Sempre há tempo de redenções para nós mesmos.
Nas veias dele corre meu sangue. Sou filha da luta, do labor, da insistência de viver, com todas as delícias e amarguras.
"Paraíba masculina, mulher macho sim sinhô."

domingo, 11 de novembro de 2012

Valsa de perdição

Quero fugir.
Quero me ter, reter, me esgarçar.
Quero ser não ser para me deixar ser sem amarras, barreiras e liquidez.
Quero me perder de vista para depois me encontrar perdida no meu lugar comum.
Quero seguir e não ir onde não me encontro para só então me ver distorcida, refigurada,
me ver outra.
E nessa valsa de perdição, morrer de ser.

Saudade sempre...

De toda saudade que abraça, há sempre os braços de alguém. Para todos os meus amores amados, minha saudade de amar.


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Toc?

Há alguns vazios que me esvaziam completamente de graça, cor, riso, amor.
É um silêncio absorto que me devora.
Não há cifras, sentido ou significado que se possa deduzir. Tudo é possível e o impossível também é viável.
Era diferente. Parecia diferente.
E, de repente, encontro um vazio onde existia lua, boca, música, palavras, cheiro, filosofia.
É um espaço inócuo que nada tem de mim mais que um lamento.
Da minha parte sôfrega, algo há de ficar no lugar.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Ânsia

De repente me vejo tão cheia de viscosidade, tomada por algo que lembra mel em sua textura.
E me sinto sufocada por uma ânsia.
Anseio ter um lugar que me ampare no meu desejo de deixar de ser.
Anseio dedos correndo e brincando entre as ondas do meu cabelo enquanto ao fundo uma voz qualquer fala de coisas que não quero prestar atenção.
Anseio o deitar na grama de um domingo de sol e música enquanto me roço em corpos tão familiares.
Anseio o desconcerto da voz grave enquanto o carro rodopia pela cidade.
Anseio o beijo que testa a minha paciência por pura vergonha.
Anseio o cheiro espontâneo que vem acompanhado de pura curiosidade.
Anseio as muitas gargalhadas soltas ao vento de tantas bobagens compartilhadas.
Anseio o hipnotismo de um céu tão cheio de estrelas quanto o de BH.
E de tudo que anseio, é o desejo daquele sorriso de canto de boca a consequência clara e leve.
Um suspiro sempre precede, aos poucos os músculos relaxam ainda com alguma resistência e esboçam a curva ascendente.
Anseio!

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Carta ao leitor (virtual), este ser tão genérico quanto os amigos imaginários

Uma vez perguntaram-me qual era o nível de censura deste espaço e me confrontei com uma ideia até então inexistente. "Nenhum." - respondi certa de mim mesma.
Confesso que quando comecei a escrever aqui, tinha o desejo de ter nos comentários um caminho de volta das tantas palavras que jogo no ar. Isso pouco se concretizou. E, agora, nada disso importa, embora continuo receptiva se algo/alguém vem.
Meu único compromisso é o de jogar tudo aquilo que me angustia, me aflige, me sufoca e me tem de sobremaneira. Uma vez livre, tudo pode ser absorvido, digerido e ressignificado. E por isso, mesmo sem resposta, é um espaço de contato. Nada pode escapar sem o toque, sem uma cutucada.
Se por ventura eu marquei nitidamente alguém nos muitos redemoinhos daqui é para que saiba que esteve comigo, em algum momento, sobremaneira.
O resto, nada tem mais comigo. Soltas as palavras seguem seu curso próprio e fica apenas o primeiro registro. Tudo aqui é extremamente intimista e livre como folha de diário que o vento leva e esbarra numa ou noutra pessoa que pode se interessar brevemente em ler. Por isso, não há censuras, nem prévias. Só eu crua, desnuda de toda superficialidade da vida social, dos papéis, das relações, das máscaras.
Por isso, também, não há explicações, justificativas a outrem. Eu só pertenço, intimamente, a mim mesma.

"O meu coração é o sol, pai de toda cor."

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Desejo

Hoje passei a tarde desejosa do que não devia.
Até o sol apareceu.
Um desejo íntimo de um momento que não existiu,
de pura intimidade.
Uma cor, uns cachos, um tonus e uma ousadia boêmia.
Também era bom ter um mar, uma rede, um sol de fim de tarde e muito suco de manga.
Um banho de suco de manga,
 para fazer pulsar tudo isso junto num frenesi sem igual.
Hoje passei a tarde desejosa do que não devia, mas que...

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Ponto morto

Devia intitular-se partida, mas seria ainda uma injustiça com os fatos.
Eu fui, mas ainda não parti.
Deixo-me levar ladeira abaixo em ponto morto. Nem lá, nem cá.
Em ponto morto. Nem ligada, nem inerte.
Trata-se, pois, de uma suspensão prudente para manter-me sem desabar.

Devia intitular-se também reencontro, mas ainda seria uma injustiça com os fatos.
Eu estou, mas não cheguei.
Deixo-me levar como dama pelo salão. Nenhum passo me pertence, apenas completo e acompanho outrem.
Fecho os olhos e a melodia embala.
Trata-se, pois, algo entre um não ser e ser o outro.
Aí, também, é ponto morto.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Um par

Um olhar me penetrou.
Vindo de uma profundeza tão desconhecida, me penetrou.
E trouxe consigo um magnetismo infindável.
Entrou porta adentro e fez dos meus pensamentos objetos livres em arruaça. Folhas no ar, vasos no chão, penas de almofadas ao vento, livros abertos, água escorrendo e um cheiro de flores.
Deu medo e fez de mim intriga.
Instigou o músculo a saltar como trapezista e
ao final, quedome a cá.
Em reza ao acaso para que um novo encontro com aquele par de olhos castanhos deixe algo além da bagunça, além das letras.

Impaciência

Agora ninguém ao meu lado.
Alguns ao meu redor, são estranhos de línguas, gestos e olhos desconhecidos.
O som adormece no silêncio
e a hora do despestar me causa impaciência.
Bastava, na verdade, um par de olhos
para fazer abrir, no rosto, um sorriso.


(em 26/09/12)

Dos ventos que sopram

A manhã de hoje é chuvosa. Diferente de tantos outros dias como o de hoje, eu não amanheci chuvosa.
Amanheci como brisa de mar. Cheirosa, gostosa e fresca.
No tato pulsa com ardor uma vontade imensa de me deixar ser.
Cada poro anseia por uma liberdade que só se pode sentir ao pular do abismo. Mas, no fundo, reside o estalar do corpo no chão.
Blah!
A coleira do cão que restringe seu mundo.
Mas, hoje, seu sou brisa de mar.


(em 26/09/12)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Blá, blá, blá... blá.


Nem corpo, nem olhos, nem voz.
Nada diz daquilo que sinto para quem nem pele, nem ouvidos, nem lábios podem entender.
Nem o amor que há, pode ser o mensageiro deste contato.
Ao fim, fica hospedada a solidão. Visita tão ingrata e importuna.

Não são ruídos presentes.
É que existe mesmo partes em que os caminhos não se tocam,
os ventos não rodopiam, as sombras ganham formas muito próprias e
os sentimentos pulsam e pausam em ritmo diverso.

Mas ainda somos nós.
Buscando rotas de fuga e alfinetando a alma.
Ainda somos o som que embala o encontro, o beijo, o gozo.
Ainda somos canção.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Baque

Ontem eu estava assim saudosa,
desejando tudo.
Hoje uma ventania me leva de arrebalde.
Sem chão, em queda contínua, no pisca pisca do cursor, procuro a palavra.
O nome, o domínio daquilo que sinto e ainda não sei.
Quem sabe a música possa me salvar?
Quem sabe a lágrima me consola?
Quem sabe um galho me ampare...

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Eu e intimamente eu, o espetáculo que Freud pagaria para ver

Um vazio me perturba e sinto o silêncio me cutucar.
Ao mesmo tempo que uma outra de mim me ronda, liberta.
Esse encontro mudou meu eixo e não sei mais em que águas navego.
Anseio desesperadamente por mais céu.
E não quero arrebentar as raízes que com tanto sacrifício finquei em sólido tão árido.
Minha boca se despedaça em carne morta sobre vestido branco.
O peito aperta e tudo que quero nesse instante é deixar de ser.
Falta o gozo. A voz.

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"Nada tenho
Vez em quando tudo
Tudo quero
Mais ou menos quanto
Vida, vida
Noves fora zero
Quero viver, quero ouvir
Quero ver..." (Ópio)

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Eu passo...

Essa não é uma carta de despedida. Embora carregue consigo um lamento.
É uma carta de justificativa de um bater de asas e também de uma esperança que fica.
Estou partindo de seu corpo, que é a sua casa.
Não me tenha mal, só preciso partir. Passarinho só canta fora da gaiola e essa hospedagem já me tinha.
Mas fica a esperança do regresso, do reencontro, do toque, do contato.
Fica também a emoção da estadia, na mala, na sala.
Pode deixar que eu mesma fecho a porta.
Levo comigo o sorriso de canto de boca, estampado na face de uma nudez limpa.
E se ainda couber um pedido que as janelas fiquem sempre abertas.


domingo, 26 de agosto de 2012

Passagem, por Vinicius

Do vento que me leva

Oh, quem és tu que me toma pelo avesso em meio a manada?
Espreme, pressiona até fazer de mim dor e alívio.
Desaparece e me anima como a alma dá vida a cousa qualquer.
Escorre salgado e deixa rastro esbranquiçado para se mostrar.
E de tudo em que me aflige, a sede que me causa é a maior angústia.
És duo.
Entre e tanto, a ti basta um.
E eis que sou sempre e até quando quiseres.
Amor.

Líbero

Era lindo o dia de sol forte e céu claro.
Eu, perdida em meio ao caos vi um pássaro voar baixo.
Voo leve e fugaz...
Lindo.
...Pisquei.
Era folha de jornal que num momento sublime de clímax intenso com o vento, se fez pássaro.
...
Ai de mim (!), se não fosse em algum momento também pássaro.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Cisne negro

Hoje senti o peso de mim esmagando-me.
Nesse labirinto sem fim que sou, descobri a mim em outro tom.
Só, intensa, talvez covarde, talvez corajosa, entregue, eu sou passagem!
Encontro nos outros um pouso que me pertença e que me deixo um pouco, mas sempre estou de partida.
Não quero magoar e nem ser mal agradecida.
Só que o céu me chama sempre e o anseio por novas entregas me seduz irresistivelmente como o canto das sereias.
Eu que me crera pouso de tantos andarilhos, me descobri como passagem.
E isso, apesar de tantas delícias que me deu, agora pesa em maciço sofrimento.
Santa dos viajantes solitários é a mais solitária (e perdida) de todos os viajantes.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Verdades erradas

Entalada.
Alguém enfiou-me goela abaixo um monte de verdades erradas. Pra variar, alguém que tem um pouco do meu amor.
Fiquei entalada em meio a perplexidade e a dor que começou a manchar de vermelho minha carne.
Sem saber como me fiz em imagem tão distorcida, cheguei a acreditar que não sabia quem eu sou.
Doeu, e na verdade ainda dói, cada letra do meu nome pronunciada como uma ofensa. A pior ofensa.
Nunca odiei tanto meu nome.
Sem forças pra responder, ainda estou entalada...
Talvez por isso minha garganta, agora, dói. Inflamou. Freud explica!
As palavras sufocam meu peito e a ansiedade me corrói.
No tic tac incessante aguardo o momento de vomitar.


p.s.: são sempre as pessoas que amamos que nos causam as dores mais intensas.

sábado, 19 de maio de 2012

Corro atrás de mim desesperada.
Tento me ter em repouso para só me ter.
O tempo me retém enquanto disjuntada tento escorrer como areia.
Nada muito proveitoso pode sair daí, da disjunção.
Agora sou fragmento.


quarta-feira, 16 de maio de 2012

...

Hoje desesperadamente careço.
Careço de tudo, num anseio que parece não ter fim.
As lágrimas não escorrem, as palavras não falam, a visita não chega e a solidão continua a me acompanhar.
Às vezes não aguento e sinto as pernas fraquejarem.
Hoje queria só uma palavra pra me libertar.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Cortaram a linha

Ontem caiu a ficha da angústia que em mim habita.
Caiu pesada e dolorida.
Sem trégua, num lance só, causando um estrago que só um tapa na cara depois de um sorriso pode causar.
Hoje acordei doída. Ainda quieta, dói.
E tudo isso é só o medo de me perder de mim.
Agora, sou como pipa voada que cai desorientada num vaivém que parece ser embalado por uma melodia de fim.
Ninguém corre atrás.

domingo, 22 de abril de 2012

Camarão que dorme a onda leva...

Mudei. Porque é sempre preciso mudar, se mover.
É preciso sair do lugar comum e ter no porto seguro um apoio de passagem.
Mudei. Nem pra melhor, nem pra pior.
Para o diferente.
Mudei. Porque cansei me ver igual ao dia de ontem, de anteontem, de "antes d'ontem" etc.
E hoje, mudada, sou preguiçosa.
A chuva só ajuda o domínio que o ócio, apesar de todo o trabalho que me espera, exerce sobre mim.
Mas, ainda na mudança sou eu de novo. E sempre serei de ser ou deixaria de existir cada vez.
Por isso, me faço, me refaço sem medo do vir a ser.
BANG!!
Tiro no escuro.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Pra terminar por hoje

Sigo com os olhos adiante,
olho para trás sem óculos e tudo só pode parecer mais distante.
Como no jogo da sedução, finjo que a dor ficou lá
e que nada tem em mim que possa trazê-la de volta.
A verdade, porém é sempre mais cruel e amarga.
Nada do que fui pode ser hoje sem deixar de ser o presente
e isso faz toda a diferença.
Eu vou, mas sei bem onde deixei meu lugar
e quanto dele carrego em mim.
Nada de paraíba em pele de inglês para carioca vê.
Eu sou é daqui, do chão que brota palmeiras e também correm calangos.
Eu sou carcará que canta como sabiá.
Malandragem...

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Caos

Hoje estou como o dia.
Um pouco de sol, um pouco de gelo, um pouco de vento, um pouco de calor, um pouco de frio, um pouco de chuva.
Hoje sou nada ao conter tudo. Algo difícil de explicar, mas simples de sentir.
Queria ser mais e sentir menos - se isso é possível.
Entre palmeiras e pinheiros, corvos e sabiás, sou um drama romântico que a loteria ou o comunismo poderiam solucionar. Ou ser só drama. 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Para que comecemos o ano tomando consciência dos obstáculos cotidianos

O mesmo lado da moeda – quem vê cara...

    Era uma manhã de sábado pouco ensolarado. O Cristo estava entre coberto, mas o centro da cidade estava, como de costume, cheio de gente. O ônibus diante do sinal de alguém. Era uma mulher um pouco aflita que pedia para tirá-la dali. Fugia com medo. Eram três que de repente a atacaram. Puxaram seu cordão com força, mas ao arrebentar ficou entre as batidas fortes de seu coração. Ainda estavam por ali tentando novas vítimas.
     - Olha lá! Atacaram a menina! A polícia ali na frente e ninguém faz nada.
    - Sorte que não levaram o cordão. Deve dá pra concertar.
    Da avenida presidencial, logo o ônibus passou por aquele lugar no qual o sagrado e a lembrança da morte conviviam na entrada da cidade. A vítima ainda atordoada lembrou bem da injustiça daquele lugar. Candelária banhada de sangue fez as pessoas se esquecerem que foi por defesa, porque o perigo iminente para qualquer cidadão de bem ainda continua. A justiça cega não via o que ‘eles’ faziam.
    São sujos, feios, bagunceiros e desbocados. Não respeitam ninguém! Mulheres, velhinhos, grávidas. São preguiçosos, não gostam de trabalhar e só querem levar uma vida fácil. Machucam as pessoas, quando não matam por uma moeda. Não dão nenhum valor a vida.
    - Mereciam umas boas porradas para aprenderem a lição!
    - O melhor era matar mesmo! Assim a gente podia andar pela rua em paz.
    - Matar não. Senão, a gente é que vai preso porque ‘eles’ são ‘de menor’. Basta uma porrada bem dada para quase morrer. Aposto que sossegavam!
    Examinou seu pescoço ainda com os arranhões que deixaram e desceu num ponto seguro, próximo ao aeroporto. Seguiu certa da lição de matemática, mas sem saber que ela se realiza todos os dias na cidade maravilhosa: três vidas por um cordão.


O mesmo lado da moeda - ... não vê coração.

    Estava perdida em meus pensamentos enquanto o sinal não abria. Estava frio e nublado. Só pensava em ir pra casa. Meu olhar devia ser vazio como quem olha a marca d’água sem colocá-la contra a luz. Num piscar havia uma mão: preta, suja, calejada e pequena. Parecia uma cuia a esperar que algo a preenchesse.
    Pisquei de novo, era uma criança. Ou melhor, era um menino com pé no chão. Vestia a máscara da fome e da pobreza. Seu silêncio falava por si. E automaticamente já sabendo da situação em que me encontrava, respondi:
    - Tenho não parceiro! Tô com o dinheiro trocadinho pro ônibus.
    De repente, ouvi um eco.
    - Parceiro?!
    A máscara caiu. Embaixo havia apenas um sorriso de criança. Logo a retomou ao rosto e seguiu seu caminho. Meu olhar, agora ainda mais perdido, encheu-se de paz e satisfação. A lição estava recobrada: “nem só de pão vive o homem”.

*Retrato de fatos da vida real.