domingo, 15 de setembro de 2019

Fênix

Quando eu era criança, eu assistia Cavaleiros do Zodíaco. Amava muitas coisas nele. Uma delas é que tinham cavaleiras, mulheres guerreiras. Que, inclusive, em algumas ocasiões foram responsáveis por salvar os heróis protagonistas. Não sei se isso procede, mas é isso ficou marcado na minha lembrança. Mas foi com esse desenho que conheci a figura da fênix. Uma coisa linda de morrer a ideia de algo que morre para renascer mais linda e poderosa. No desenho, mais do que simpatizar com o mito, eu gostava mesmo da construção do personagem, do cavaleiro fênix. Bom, relato aqui a minha construção dele, o que ficou pra mim. Certamente há um tanto de criação e fantasia da parte da Silvana criança. Pois bem! Ele era um desses personagens errantes, um herói errante e controverso, solitário, independente, livre. Um desses heróis que a gente ama e odeia ao mesmo tempo. Mas ele tem princípios, muito próprios. Ele também é um irmão mais velho. Eu era, sou irmã mais velha. Pra mim ele tinha um tanto do que eu era e do que eu queria ser. Ikki de Fênix renasceu das cinzas.

Num dos filmes de Harry Potter, há uma fênix na sala do Dumbledore. A pobrezinha dá pena de ver; ela passa quase todo o filme super feia, arrancando suas penas. É uma coisa doída. Na cena, acho que Harry fica meio que querendo diminuir o sofrimento da bichinha, não sei. Mas essa cena me marcou muito. A ave definhando, morrendo aos poucos, arrancando suas penas, arrancando pedaços de si até que o inevitável aconteça, a morte. Harry e nós somos informados que isso é preciso para que ela renasça linda e forte, mas isso não muda a imagem da dor da morte. O mito da fênix ali não tinha glamour, não tinha heroísmo, ainda que errante. Parte de ser fênix era só dor.

Eu cresci sendo subestimada. Não especialmente, mas só porque no contexto em que nasce e cresci o horizonte para meninas como eu, era muito perto, muito curto. Especificamente, até botavam mais fé em mim do que em outras crianças porque eu era aquela responsável, certinha, caprichosa, estudiosa. Eu sequer imagino como é o peso para as outras que estavam completamente fora dessa caixinha em que era possível receber um pouco mais de fé. Eu só sei que o peso para mim ainda sim é grande, é bem grande. Sou insegura apesar de todas as minhas notáveis habilidades e capacidade. Elogios não são suficientes para aplacar essa insegurança, que sempre me puxa, me prende, me persegue.

Já há um tempo tenho tentado enfrentar essa questão de frente porque apesar de todo o meu desejo de ser grande, eu me contento com os bastidores. Como estratégia de enfrentamento tenho me esforçado para bancar meus desejos. Ontem, eu abri uma exposição de arte contemporânea, na figura da curadora dela. Foi um projeto meu, que surgiu num ímpeto, mas que foi ganhando cada vez mais força ao ser partilhado e construído junto com pessoas muito incríveis e maravilhosas. Ontem, talvez pela primeira vez na minha vida, eu ocupei um lugar de protagonismo indubitável. De modo tão forte, que minha insegurança não tem argumentos contra, de modo que não há nada que possa diminuir o que consegui realizar e, sobretudo, como consegui ocupar esse lugar. E isso, agora, só me gera uma angústia, uma dor.

Ontem foi um momento glorioso para mim. Um momento que pode parecer o renascimento da fênix, o momento em que ela queima e se alimenta de seu próprio fogo para resplandecer mais linda e forte e selvagem e livre. Mas ontem... Ontem foi só um arrancar de pena. Ontem foi um arrancar de uma pena daquelas partes mais sensíveis, mais doídas. Ainda falta um tanto até o fogo me consumir. Ainda falta.

Mas como Ikki de fênix teve seu momento de virada épica, de transformação do vilão para o herói errante, ontem foi o meu momento de viradinha épica também. Ontem, ao arrancar essa pena das mais doídas, eu pude sentir que a dor que carrego é a dor de ser fênix.