quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Oferta

O exercício proposto era escolher um lugar, absorvê-lo e produzir registros, do tipo que você quisesse, do tipo que o processo pedisse, permitisse. Eu logo pensei no parque, o que tem próximo a minha casa, o que fui semanas antes para o exercício de banho de sol, o primeiro depois de meses de jejum do fora que não fosse absolutamente necessário. 

A oferta era de retribuição com um sorvete, um sorvete acompanhado. Retribuição pela disponibilidade de ler e refletir e devolver pensamentos, ideias, elogios e críticas. A oferta era amigável e flexível, ainda meio inesperada. A companhia havia sido cotidiana outrora, agora era distante.

O pensamento foi unir o exercício, que também era oferta, com a oferta propriamente dita. Na segunda, o sol raiou e tudo estava confirmado. O encontro aconteceu, um pouco mais próximo do que o momento do mundo nos recomenda. Absorvia a brisa fresca, a luminosidade, a sombra, o frescor da terra que transpassava pelo tecido da canga, a vista de pessoas ao longe buscando formas de aproveitar o fora, os retalhos de grama que grudavam nas pernas, o cachorro que veio saltitante e parou para me observar. Som de vento, de passos, de conversas ao longe, de trânsito, de crianças, de cachorros, de folhas, de água. 

Dos registros, só na cabeça, o que vi, ouvi, senti. O sorvete não veio e dispensei qualquer esforço para que viesse porque esse momento do fora era precioso demais para ser coadjuvante dessa empreitada. A oferta ainda sim não se perdia porque o sorvete era pretexto de uma oferta muito mais íntima, uma oferta para tudo aquilo que extrapola a realidade pandêmica de agora, no qual o toque é interdito.

Recusei a oferta principalmente porque na maior parte do tempo eu me vi desconectada com ela, com a companhia, com o risco ou o desejo. Mas no final de tudo, quando o parque já ficava pra trás, a memória despertou preguiçosa, mas serelepe. E cada vez mais as lembranças das infinitas possibilidades de sentir através de um outro saltitavam fervorosas na minha cabeça. Era como se de repente meu corpo saísse de uma dormência e começasse a formigar. Eu podia lembrar do sabor de um aperto, dos sons do desejo, dos gestos das vontades. Ainda agora, escrevendo esse texto relato elaboração, minha boca água pelo que não foi, pelo que pode ser. 

É engraçado como toda a racionalidade, todo o esforço da cultura, de milhares de anos, se esvai com apenas uma rega no Id; rapidamente, parte de nós, parte de mim se animaliza e ignora toda lógica, toda razão, toda palavra. Quase como Gremlins, o desejo se multiplica em mil e se espalha e vai pra lugares absortos.

A oferta... a oferta é obscena. E não porque envolve sexo, mas porque é um convite para uma experiência que te faz se sentir esplendorosamente viva num contexto de morte e desterro. Como recusar?