quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

O pior de Friends e a amizade na vida adulta

Não sou fã de Friends. Dois dos meus melhores amigos são. Assisti a série porque morando sozinha passei a ter o hábito de comer vendo alguma coisa. Dez temporadas, episódios curtos e um conteúdo leve foram características perfeitas para esse hábito. Vendo Friends, me diverti com muitas piadas, mas também passei muita raiva com o comportamento dos personagens. Minha visão sobre a série é um pouco crítica e talvez isso tenha a ver com o fato de eu só ter assistido a queridinha da TV americana depois de adulta. Vi a série já na casa dos 30.

Uma das coisas que me chamou muito atenção em Friends é como todos os personagens, sem exceção, evitam as coisas. Diante de uma situação de sofrimento, de um erro cometido, de uma irresponsabilidade ou inconsequência, a postura deles é fugir, evitar ou negar, mesmo que seja ridículo. Todos em Friends possuem a maturidade de um adolescente. E essa postura que os leva a situações absolutamente cômicas e por isso nós só rimos da série e alguma parrte de nós se identifica, todos fizemos coisas tão estúpidas quanto os personagens em algum momento da vida. Além disso, a série trabalha com um sonho adolescente, o de crescermos felizes para sempre com nossos amigos. Friends é uma série sobre um grupo de amigos adolescentes que vivem vida de adulto.

Aqui, do outro lado da tela, acontece a vida e nela a imaturidade não leva necessariamente a situações cômicas. Na vida real, a irresponsabilidade cobra preços mais altos do que apenas ser exposto ao ridículo. Ser adulto talvez seja, sobretudo, assumir responsabilidade pelas escolhas, pelas coisas ditas e feitas, pelo outro, por si. O pior de Friends pra mim é a naturalização desse comportamento adulto imaturo, irresponsável, como modelo. Pensem, por exemplo, nos muitos pais que simplesmente desaparecem ou que acham que pagar pensão é mais do que suficiente. Mas a série é sobre amizade, né?

Essa postura dos personagens que estou chamando de imatura e irresponsável se traduz, principalmente, no comportamento de fingir que está tudo bem. E isso não só em relação as questões individuais como também as questões que atravessam a relação de amizade entre eles. O que culmina, vez por outra, em confrontos sensíveis ou em longos sofrimentos "desnecessários". E, se a gente observar bem, vemos que o desfecho poderia ser diferente se fingir que está tudo bem não fosse a postura adotada.

Mas esse texto é menos sobre Friends, a série, e mais sobre a amizade na vida adulta. 

Terminei o ano com uma mega DR com uma amiga. Daquelas em que a gente grita, diz coisas duras, chora, se magoa. Uma amizade de 18 anos que não quero perder. Há 3 anos, iniciou um processo de término de amizade com outra grande amiga. Talvez tenha terminado já, talvez ainda tenha possibilidade de a gente conseguir se reencontrar. Outra amizade de mais de uma década que não gostaria de perder. Há 5 anos, perdi um amigo irmão. Lutei por ele, mas não foi o suficiente. A escolha não é só minha. Doeu, ainda dói. 

A vida adulta nos coloca desafios grandes. Quem a gente é, o que a gente quer, o que a gente faz, o que a gente precisa fazer, como a gente vive. Coisas que a gente vai resolvendo ou não ao longo do tempo e que implicam toda a nossa vida. Às vezes é pesado demais, às vezes a gente adoece, às vezes a gente consegue seguir apesar de, às vezes a gente se recolhe, às vezes a gente não aguenta e às vezes a gente descobre forças que nem sabia que existiam. No meio disso tudo estão nossos amigos, a nossa escolha daquilo que a gentte quer ter por perto. Nem sempre a escolha é consciente e, por isso mesmo, não é possível construir um felizes para sempre. Porque a gente pode escolher também não tê-los mais por perto, ainda que não saiba ou não perceba. E acontece ainda que a vida adulta está acontecendo para todo mundo ao mesmo tempo. Às vezes estar junto com alguém que está numa situação x enquanto você está na y pode ser desagradável, doloroso e até impossível, apesar de tudo o que foi construído.

Por toda essa complexidade, que é viver, penso que os amigos devem ser aquele lugar quentinho e acolhedor em que a gente não precisa fingir que está tudo bem, que a gente pode soltar a armadura e respirar, que todas as máscaras podem ser colocadas de lado, o lugar em que a gente pode ser vulnerável. Penso que os amigos devem ser o nosso ninho. Que seja o lugar em que a gente possa sentir segurança e falar o que sentimos ou dizer que "agora não dá, mas aceito abraço.". E, por isso, também deve ser o lugar que seja uma espécie de bússola. Que seja o lugar onde exista confiança e liberdade para dizer e ouvir "Amiga, você está doida! Não faz isso não." ou "Amiga, você precisa fazer isso. Estamos com você.". 

Fingir que está tudo bem e exigir dos amigos o mesmo, me parece que é construir a amizade como um lugar oposto disso. Phoebe se mudou do apartamento que dividia com a Mônica e durante dias fingiu continuar morando lá. Lidar com a Mônica não é fácil, sabemos. Mas será que a amizade deve ser esse lugar?  Como todas as relações, a amizade exige responsabilidade, cuidado, comprometimento e entrega. Como todas as relações, ela é uma construção contínua.

Ter amigos para vida, para todas as ocasiões é o que a gente talvez mais queira de Friends. E está mais do que provado que não se trata de um sonho impossível, só não acontece como mágica. Mônica e Rachel se perderam por uns anos, se reencontraram e construíram novas bases para o laço que tinham. E não se enganem, numa segunda camada, Friends apresenta também algumas dessas muitas questões grandes da vida adulta. Não se sentir amada pelos pais, ser subestimada, se sentir fracassado, insistir nos sonhos, conquistar um grande amor, reinventar uma vida.     

Eu acredito na amizade como um ninho, como um lugar em que a gente não precisa fingir que está tudo bem, como um lugar que pode me orientar quando eu estiver perdida, porque é o lugar que eu construí para me reconhecer, nas potências, nos erros, na força e na vulnerabilidade. O lugar que possa me dizer as verdades mais duras porque é o lugar que me conhece escarnada. E é o lugar que eu construí com outras pessoas e por isso o lugar que exige de mim a mesma responsabilidade que o outro assumiu.

Nada fácil, mas um lugar bonito de sentir.