terça-feira, 19 de setembro de 2017

Descompasso

Agora tudo é diferente.
Antes éramos segredo, só nosso.
A proibição pesa de um jeito muito particular
porque nunca fomos Romeu e Julieta e nem quisemos ser.
Antes, passarinhos dando algumas voltas no céu.

Seguimos em descompasso.
Os medos, os anseios, os desejos e a saudade se condensam como neblina forte.
Limita nossos passos, mas não deixa de ter o frescor que tanto nos faz sorrir.

E, apesar de tudo, resistimos ao certo, resistimos a nós mesmos.
Porque o nosso maior prazer não é estar juntos,
mas com o melhor de nós que o outro evoca.
No fundo, é o desejo egoísta de ser.


segunda-feira, 31 de julho de 2017

Mordida

Tem um Je ne sais quoi
que faz as minhas carnes tremerem.
Uma mansidão na voz e no jeito engomadinho de falar
que traz doçura ao caldo apimentado que me põe em ardor
com quase nada.
Mobiliza minhas vontades,
refaz os meus desejos,
anseia o meu prazer.
Devia ser nada.
Um reencontro fortuito do acaso,
trivial e quase besta.
E, agora, me pego com sorriso de canto de boca em frente a telas virtuais.
Um certo tom abestalhado ao meu espírito, que faz parecer que achei água no deserto.
Pode até ser miragem.
Pode até ser a luz dos astros emprestando um brilho extra.
Mas já fez reexistir um universo inteiro de estrelas cintilantes,
um deságue no mar,
uma captura daquilo que me faz ser desejo.

sábado, 22 de julho de 2017

Bagunça

No quarto, quase de freira, tem pouca coisa.
Uma cama de solteiro, um guarda-roupa, um ventilador,
um banco com minha mochila,
outro, ao lado da cama, para apoiar os óculos e o celular,
uma luminária.

Ainda assim, o quarto transpira bagunça.

A janela ainda está sem os vidros, coberta só com um pano.
As portas do guarda-roupa ainda estão sem puxadores.
Na chave papaiz que fica na porta está pendurada uma sacola para o lixo.
A toalha molhada seca sobre o ventilador.
O colchão, maior que a cama, ainda está no plástico.
E eu, ainda estou sem lugar.










terça-feira, 27 de junho de 2017

Ainda você

O que a gente faz depois de um grande amor? Depois do melhor amor?
Sigo em frente sem saber ao certo se ele se transformou num fantasma ou se ainda é só o amor pulsando aqui, apesar dos 15 meses passados.
Ele evocava o melhor de mim.
Eu me sentia completa porque sentia que podia ser eu plenamente, sem censuras, sem esconderijos, sem silêncios.
"O que vocês tem é muito bonito. Do tipo de amor que a gente fica admirando." - as amigas me dizem.
Sentada aqui, agora, escrevendo, ao meu redor você está presente.

Schön, dass es dich gibt!

terça-feira, 20 de junho de 2017

Mudança, outra vez

A lembrança mais remota de desejar ter um lugar pra mim faz parte da minha primeira infância. A casa em que eu vivia tinha 3 quartos. Um grande, um médio e um pequeno. O médio era o quarto dos meus pais. Nele tinha uma cama de casal, um guarda-roupa e um berço. No quarto grande, lembro de ter quase nada. Uma máquina de costura em algum tempo, uma cama onde eu dormia e presumo que tinha outra cama também em algum tempo em que meu tio morou com a gente. Acho que ele não tinha porta, talvez por isso os meus pais não o usassem. Lembro de achá-lo escuro, melhor dizendo de um imenso vazio escuro. Ele tinha uma janela de madeira que dava para o muro alto da vila. Então, de fato a vista era para o beco, onde no fundo alguns morcegos faziam moradia. A melhor lembrança que tenho daquele quarto foi de um natal em que coloquei na janela um All Star botinha que eu tinha. O quarto menor era a oficina do meu pai. Ele era um quarto estreito, talvez com 2m de largura. Ele ficava na parte da frente da casa. Tinha uma janela grande de vidro. Ele era o ponto de luz da casa. Às vezes, eu ficava olhando pra ele e namorando aquele lugar. Pensava que poderia ser o meu quarto. Que eu não me importava nenhum um tico de ser pequeno, que estaria feliz se pudesse ter um espaço pra mim ali.
Até os meus 28 anos, eu nunca tinha tido um quarto só meu. Eu cresci com uma irmã e um irmão. Duas meninas deviam dividir o mesmo quarto porque menino não pode dormir no mesmo lugar que menina. Eu sou a mais velha. Cresci aprendendo a cuidar dos outros, a me colocar sempre atenta e disponível. Cresci aprendendo que devia dar conta sozinha das minhas questões porque não havia espaço para elas. Quando me sentia triste, eu ia para o banheiro e chorava no chuveiro. Escrevia em diários ou agendas de forma poética para que ninguém desvendasse o meu íntimo. Quando adolescente, às vezes trepava na grade da janela e subia na laje para ficar só comigo mesma e meus pensamentos. Lá em cima, à vista de todos, ninguém podia me ver de verdade. Eu podia ser só eu, sem brigar por isso.
Talvez a minha busca por um lugar só meu tenha sido na verdade a busca por um lugar em que eu pudesse ser, sem lutar por isso. Hoje, em que estou em vias de voltar a morar com a minha família, talvez o mais assustador seja perder esse lugar abstrato e ainda assim tão concreto, que é a liberdade de ser. Foi tão difícil até aqui.

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Essa será a minha 9ª mudança. Dessa vez, terei um quarto meu. Já faz dois meses que estou "construindo" esse quarto. Estou cansada. Também estou sentindo aos poucos o ritmo que a casa tem agora. Meus sobrinhos estão ansiosos e felizes que vou morar lá. Já sinto coisas que me incomodam e coisas de que gosto também. Já perdi o medo de a volta significar prisão. Já entendi que as minhas conquistas vão comigo e que talvez essa mudança, essa espécie de estaca 0 com upgrade, signifique o começo de um novo caminho. Já faz tempo que ando fechando coisas e abrindo outras. Essa é só mais uma.


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Se tudo der certo, domingo eu volto. Não sei como será. Não sei como serei. Sei só quem eu me tornei até aqui.



quinta-feira, 9 de março de 2017

Mar

Nunca me senti mar como agora.
Tento ver beleza na inconstância de ser.
Amanheço sempre em novidade. Turva, clara, calma, agitada, caribenha, escura, forte, devastadora, perigosa, fluida, atrativa.
No balanço, não durmo, não acalento. Antes de tudo, enjoo e entonteço.
Mas se olho as pedras, se olho a fortaleza delas, a solidez... Se eu fosse pedra, me despedaçava.
Melhor ser mar.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Desabafo de um dia que não lembro exatamente qual foi

Altura

Tento não desesperar,
mas a espera por consequências boas de esforços tão espremidos é cada vez mais sufocante
conforme o vento sopra a areia.
O tempo se vai leve e serelepe
como se dele nada dependesse.
Tento buscar a confiança de que serei melhor apesar dos dias ruins. E escondo a palidez do medo com batom vermelho e um estalar de lábios que não se cansam de falar.
Recomeçar é procurar chão quando não dá altura.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Quando páscoa e carnaval são uma coisa só

31 chegou. Abri os olhos e respirei fundo. Algo começava a doer. Já tinham 3 mensagens a minha espera. Li-as com os olhos afogados já. Senti como se eu fosse uma bexiga d'água pressionada prestes a romper. Sufoco. Tentava respirar. Pedi socorro. A dor parecia insuperável, insuportável. Me senti em frangalhos. Eu era só cacos. E tudo isso antes das 7:30 da manhã.

Recebi ajuda. Respirei fundo várias vezes. Me juntaram e fui à praia entregar minhas energias ao sol e ao mar. Eles sempre tiveram um efeito restaurador sobre mim. Há algo de calmaria no canto das ondas, na brisa que beija a gente e alivia o abraço do calor. O vento foi trazendo ao longo do dia carinho de vários lugares. Voltei pra casa. Tomei banho e me arrumei. Já tinha vontade de estar bonita. Fui jantar com 3 grandes amigas, num dos meus sabores preferidos da cidade. Nos divertimos com nossa pobreza. Comemos apenas para presentear nosso paladar. Era suficiente pra dar gosto ao dia. Voltamos pra minha casa.

Eu fui a primeira a entrar porque estava com a chave de casa. No breve corredor, vi papéis coloridos e reluzentes em frangalhos. No alto do batente da entrada para a sala havia um cacho de bolas com cachos de papéis azuis. A sala era escura, silenciosa e normal. Meu cérebro bugou por um instante. Um coro meio descoordenado irrompeu o silêncio e a escuridão. Tudo fez sentido. Tudo foi sentido. A maior surpresa. Eu, estupefata, não chorei. Isso por si só é uma surpresa das grandes.

Tinha tudo. Tinha amigas e amigos. Tinha família. Tinha crianças correndo pela casa e jogando papéis em frangalhos para todos os lados, especialmente na minha cabeça. Tinha bolo. Tinha painel decorativo. Tinha bolas. Tinha churrasco (meu pai sempre dando um jeito de garantir o churrasco nosso de cada dia). Tinha risos. Tinha inúmeras histórias de como aquilo tudo se fez. Tinha o alívio de todas as apreensões e expectativas. Tinha cachorro quente. Tinha decoração sobre o mar. Tinha presentinho, abraços e beijos. Tinha cartão (lindo). Tinha presença dos que estavam longe (um dos melhores presentes) e, por isso, teve choro também. Ah, não tinha vela... Espera, tinha vela de igreja, de quando falta luz, de quando a gente acende uma chama para fazer um pedido por alguém que foi para algum lugar (ou lugar nenhum). Serviu. Tinha amor, muito amor.

E foi assim que 31 no 31 se tornou quase uma páscoa pessoal. Juntaram todos os cacos quebrados daquela manhã, colaram, passaram pintura nova e fizeram de mim um vaso novo. A gente não é nada sozinho; a gente não é nada vazio.

Tem amor, muito amor.



quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Coisas fora do lugar

Porque se felicidade fosse um sentimento para ser constante, ela seria apatia. 

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Algumas pessoas vão dizer que estou no meu inferno astral, outras dirão que as mudanças fazem parte da vida e outras que há males que vêm para o bem. Eu vou apenas dizer que estou numa fase em que as coisas estão fora do lugar.

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Eu sempre fui magrela. Esqueleto humano ou Olívia Palito era como minha irmã me chamava para implicar comigo. Eu fui a primeira da fila da turma, com exceção de 2 anos: na primeira série, existia a Flavinha, que sofria de nanismo; na quinta série, a aluna nova Stephanie me superou, mas foi da minha turma só nesse ano. Eu era a última a ser escolhida para os times de jogos ou esportes. Odiei sempre as aulas de educação física, com exceção de quando jogamos handebol e meu biotipo representava vantagem. Eu pude jogar sem ser atropelada ou deixada de lado. Com os meninos era fácil não ser considerada como opção, as meninas "com corpo" brilham um tanto mais. Até os meus 20 anos, meu peso normal era 42kg e não era por falta de comida. Aliás, as pessoas costumavam me oferecer a geladeira quase sempre. Eu engordei com o anticoncepcional uns 4kg e rompi a marca dos 42 para, até hoje, nunca mais voltar. Ainda assim, eu vestia as calças de 10-11 anos da C&A. Uma mulher com roupa infantil se beneficiando da tragédia do processo de adultização das meninas. Conforme fui envelhecendo fui acumulando de tempos em tempos 2kg. Cheguei, finalmente, aos 52kg aos 28 anos. 52 era a marca que pelos cálculos de idade e altura, eu deveria estar desde os 20 anos. Com essa marca eu passei, finalmente, a vestir calças tamanho 34 (menor numeração adulta) de boa. Na felicidade, até alguns modelos 36 serviam. Parei de sofrer. Eu tinha uns pneus bem pequenos nas laterais e uma pancinha, mas estava feliz. Eu também tinha peitos mais redondos, um colo que não marcava meus ossos, ombros que deixaram de ser pontiagudos, bunda que podia resistir mais tempo sentada sem sentir dor pelos ossos dos quadris. Eu não tinha um mega corpo, mas me via uma mulher atraente porque eu me sentia feliz com meu corpo.

Nos últimos meses, perdi 4kg gradualmente. Na perda do primeiro quilo, eu já ouvi: "Você emagreceu, é?". Quando a gente é bem magra, cada quilo faz uma diferença absurda e notável. No último fim de semana, alguém que não me via há um bocado de tempo me reencontrou e perguntou se eu estava bem e porque tinha perdido tanto peso. Vocês lembram da imagem do Cazuza no show do Canecão, pois eu me senti como se estivesse daquele jeito. Foi a primeira vez que associaram tão diretamente a minha perda de peso com uma doença, mas ao longo dos últimos meses fui interpelada cada vez sobre ter emagrecido. Meu medo é perder ainda mais e não voltar. 

Meu corpo está fora do lugar.

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Quase sempre na minha vida as coisas confluíram para um encaixe harmônico. Bem aquela coisa de surgir no momento certo aquilo que eu precisava. Isso não quer dizer que as coisas chegaram até mim de modo fácil. Não mesmo. Ralei muito para conseguir cada coisa. O que aconteceu, geralmente, foi de essas conquistas se encaixarem mais ou menos bem no tempo e no espaço. Por outro lado, também amarguei umas boas em situações que erros humanos tornaram a minha vida um pouco pior, daqueles azares gratuitos da vida. O fato é que nunca estive como agora, sem trabalho, sem dinheiro para pagar as contas no mês que vem e sem nada no horizonte que me permita vislumbrar possibilidades. Uma vida inteira lutando para ter uma vida modesta não é suficiente em alguns momentos e isso pesa e dói um bocado. Eu, que desde os 19 anos, tinha com o que me virar, me vejo cansada e flertando com o sentimento de fracasso.

Minha autonomia está fora de lugar.

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Minha vida afetiva-sexual foi marcada um bocado de tempo por uma auto estima relativamente baixa, em parte pelas questões sobre o meu corpo, em parte pelo processo de me constituir enquanto mulher. Ao longo de pouco mais de 10 anos, mais ou menos, acumulei umas 8 aventuras afetuosas e sexuais marcantes e felizes, um relacionamento de quase 7 anos, onde consolidei minha base mulher, e um relacionamento de 1 ano e meio, no qual aprendi o que é um relacionamento emancipador. Meu pacote das experiências ruins era leve, beneficiado em muito por serem flexionados por questões além do controle meu e de outrem, como a idade ou a inexperiência ou os medos. Desde o ano passado eu estou solteira, mulher adulta independente solteira. Solteira por escolha madura de não estirar o melhor relacionamento da vida. Claro que a escolha não exime a dor da saudade. Claro que o melhor relacionamento da vida se torna uma grande referência. Claro que o processo de luto é importante e deve ser respeitado. Tudo anotado, compreendido e sentido. De lá pra cá, me propus aventurar-me com 5 pessoas, um lote que tem dado um pesinho extra ao saco de experiências ruins, no melhor dos casos, Ok. Quase 10 meses e nenhum gozo que não tenha vindo pelas minhas mãos. 

Meu prazer está fora de lugar. 

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Menos de duas semanas para trintaeuntar. Uma amiga da escola dizia que 30 anos era horrível, que ela iria pular os 30, repetir os 29 ou avançar para os 31. Eu senti o peso de ser adulto à vera nos 29, quando os principais assuntos da vida dos meus amigos e da minha vida passaram a ser filhos, casa, carreira profissional e separações. Eram coisas grandes, responsabilidades daquelas que não tem para onde correr porque implicavam em consequências igualmente grandes. Os 30 só confirmaram que a gente leva vida dura, difícil de administrar. Não me senti mais velha por isso, me senti diante de desafios maiores, com mais riscos. Eu queria comemorar os 30 com grandiosidade, mas a rotina da vida adulta exigiu comemorar com calma e tranquilidade. Eu sempre fui aquela que ama comemorar aniversário, que moveria céus e terras para que todas as pessoas queridas e amadas estivessem reunidas no níver meu ou de alguém. Acontece que faço, do ponto de vista das comemorações, o aniversário num dia ingrato. Fim de mês e início de ano. Ninguém tem grana ou tem grana e o resultado geral é igual, a escassez de convidados presentes. Isso já abalou meu espírito algumas vezes. Mas aprendi a não achar que meu aniversário é o acontecimento mais importante do universo e que a ausência das pessoas não significa que elas me amem menos. Nunca acreditei nisso de verdade, mas às vezes as ausências criam vazio e vazio é lugar de desamparo. 31 no 31 devia ser mesmo motivo de comemorar, não vai mais se repetir a coincidência numérica. Mas se me perguntarem hoje qual o meu plano para o meu aniversário, eu vou dizer que o plano é M - O - R - R - E - RRRRR. O espírito da renovação não está aqui, pela primeira vez. Não há sugestão de comemoração que me faça imaginar de que seria feliz, mas a imaginação de não comemorar me faz acreditar que poderia ser ainda mais triste. "Oh vida... Oh céus..."

Meu espírito de renovação está fora do lugar.

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O resto ainda não escapuliu do lugar. Os amigos e as amigas ainda estão por aqui por perto. O bom senso deles e os conselhos também. A boa vontade de me ajudar nunca faltou. A amizade sem par de um grande amor, me acompanha em cada desafio. A casa ainda está aqui também, abrigando a mim e aos problemas. A família tá no zelo possível sempre ali. E por isso tudo, eu ainda não me desesperei completamente. Eu ainda estou aqui, me contorcendo de aflição, mas no lugar.

Eu ainda estou no lugar.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Medo de não ser ou reflexão pré-níver

Eu cresci num marco de possibilidades muito diverso do que os meus pais e familiares. Eu não precisava apenas sobreviver. Podia fazer escolhas de vida, embora nem soubesse ao certo o que isso poderia ser e significar. A única coisa que era clara para mim era o que eu não queria ser. E eu não queria ser parecida com as referências que tinha próximas a mim. Eu não queria ser dona de casa, eu não queria ser alguém dependente, não queria ser alguém sem conhecimento, ignorante, não queria ser uma mulher que precisava de algum homem para viver, não queria ser alguém presa pelas possibilidades. E eu não queria todas essas coisas já desde muito criança. Por isso, eu estudei. Sabia que fosse o que fosse que eu deveria fazer, o caminho passaria pelos estudos, pelo conhecimento.

De lá pra cá, foi um caminho um tanto solitário. Fiz as principais escolhas da minha vida sozinha. Sozinha porque eu estava operando num universo estranho à realidade dos mais próximos e mais velhos. No âmbito da minha família, eu estava desbravando mundos nunca antes explorados. Esse caminho é mesmo solitário.

Ainda hoje há quem pense que eu fiz faculdade e me formei porque sempre fui inteligente e estudiosa. Isso nunca foi verdade para mim. Sempre carreguei um poço de medo e insegurança comigo. O contrário não seria natural. Quando se adentra no desconhecido, medo e insegurança são os primeiros sentimentos. A verdade para mim sempre foi que eu fiz o que fiz, cheguei onde cheguei, porque tive medo de não ser, medo de não viver.

Não ser alguém que escolhe os caminhos. Não ser alguém que busca a felicidade. Não ser alguém que encara os medos. Não ser alguém que abraça o amor, mesmo com os riscos.

Quase mais de 3 décadas e a jornada está longe de terminar. Eu cumpri com uma primeira parte do caminho: a de sair do lugar, a de construir mais possibilidades que as postas socialmente para mim até então. E isso levou um pouco mais de dez anos. rsrs

Hoje, estou noutra parte. Na parte de construir o lugar em que quero estar, a pessoa que eu quero ser. [Talvez, a parte mais difícil...]

O medo ainda me acompanha. Às vezes ele se agiganta, às vezes me escapa, às vezes se esconde. Depois de uma certa idade, a gente não tem mais rede de proteção e recomeçar pode ser tarefa quase impossível. Com certeza, tarefa não menos que árdua e dolorosa. Por isso, tanta gente presa no lugar da infelicidade. Requer trabalho, força, criatividade, coragem e apoio para nos movermos na direção do improvável.

Não há segredos ou truques. Às vezes, a gente corta na própria carne. Às vezes alguém embarca com a gente. Noutras, as pessoas acreditam em você porque isso faz com que elas acreditem em si mesmas também. E você acredita em si porque elas acreditam em você. A gente cai, dá a cara a tapa, põe a mão no fogo, chora. Mas a gente também ri, se satisfaz, se envaidece, tem esperança e segue.

Que nenhum medo nos paralise, que os desejos nos movam sempre.


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Ouro de tolo é quase um hino que me lembra que a gente devia ser mais que sobreviventes.



quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Porque a morte chegou perto de verdade dessa vez.

No primeiro dia do ano, ele se foi.
Já havia alguns bons anos que não convivíamos mais. Eu cresci e sempre senti que não soubemos nos encontrarmos como adultos.
Quando a notícia de sua internação no hospital veio, me dei conta que tudo o que eu sabia sobre ele era de um ponto de vista ingênuo e infantil. Não era a Silvana que podia falar do seu padrinho, mas a Nana e somente ela. Tive medo, me senti irresponsável, boba.
Quando nos reencontramos no hospital e conversamos, fiquei pensando que ele era um adulto bem diferente do que eu supunha. Fiquei pensando que gostaria de ter podido conversar mais com ele antes, pois tínhamos algumas opiniões próximas.
Descobri nele uma dignidade que sempre havia me escapado antes.
Quando ele foi para o CTI, eu senti que seu corpo já não podia carregar mais a couraça de integridade, dignidade e força, que ele arrastou por toda a vida. A cabeça ainda era das mais lúcidas, mas o corpo tem seu próprio tempo, não é mesmo?
Foi a primeira vez que a morte chegou mesmo perto de mim, passou raspando. E o cheiro que ela deixou foi de alívio e agradecimento. Poupou-o de exaurir também a mente. Há muita paz num descanso.

Mas de todas as coisas que consigo pensar sobre ele, de lembrar dele, a mais forte e a que mais tem significado para mim reside numa frase simples: "À benção, Nana?". Quando eu era pequena, sofria com essa história de pedir benção. Eu nunca lembrava de pedir e quando lembrava, me embananava toda com as frases. Às vezes eu trocava a ordem de resposta e pergunta. Meu Dindo achava graça. Ele sempre ria. Um dia, vendo que aquilo era mesmo tarefa árdua para mim, decidiu que ele é quem me pediria a benção e, assim, eu passei a abençoá-lo cada vez que nos víamos. Esse gesto muito singelo foi um dos mais significativos, pois ninguém se interessa muito sobre os desejos de uma criança; o que ela quer quase nunca importa, sobretudo no que tange as tradições e costumes. Pouco importa se algo daquilo diz alguma coisa para ela, ela só deve aceitar e reproduzir. Mas o que ele fez foi respeitar meus limites, ser generoso e não expô-los cada vez. Eu não tinha a menor vontade de pedir benção, mas dá-la era como um gesto de generosidade. E eu ficava mesmo satisfeita de fazê-lo porque não era mais uma obrigação. E, pensando agora, talvez essa tenha sido a primeira lição que eu recebi de subversão da ordem e da capacidade que a gente tem pra mudar as coisas.

Osmar dos Reis para os desconhecidos. Célio para os próximos. Dindo, para mim.
Deus te abençoe!