domingo, 4 de agosto de 2013

Submundo

   - Eu te atravesso! - murmurou para si como se dissesse ao pé do ouvido dele. Esse era seu desejo naquele instante, mas o vazio na casa fez com que murmurasse para si própria. Ele não era mesmo dali e só foi concebido na vida dela por uma travessia travessura da noite. Aquele peito de imensidão de mar, onde ela costumava se jogar às vezes e se deixar no embalo rítmico da pulsação, muitas vezes secava. Estava melancólica. A solidão sempre é.
Ela comia, respirava, estudava, trabalhava, dormia como qualquer outra pessoa. Mas era mesmo pessoa outra no olhar, no riso, na entrega, no anseio de amar, na falta do medo, na coragem de afirmar e bancar seu desejo. E essa mistura aparentemente contraditória é que formava o mistério que o atraiu. Ela era paradoxo! Personagem real da história que ele gostaria de ler e de também ser personagem.
Não se sabe o que os aproximou em tantos momentos, se foi o tato ardente, as letras pungentes ou o reflexo exigente. O que se sabe é que eram cúmplices, mais do que tudo. Cúmplices num submundo dos desejos, dos íntimos e das verdades não ditas. Ali era o espaço desse encontro.
Ele era autor e crítico da vida que levava. E ainda mais, era um leitor exigente, difícil de ser cativado. Se deixava levar com o vento, guardava um punhado de sorte no bolso, mantinha as advertências onde não pudessem perturbá-lo. Mantinha um super ego carrasco com as regras libertinas que criara para si e de quando em vez se permitia ser sincero com seu orgulho, ego e imagem. De resto, tentava ser o que faltava no mundo.
E não há cumplicidade maior do que aquela entre o autor-crítico-leitor e a heroína. E nenhuma atmosfera dessa travessia pode ser outra senão a de um tabu. Por isso, o submundo é o abrigo dessa incestuosa lateralidade.
  - Minhas verdades gritam teu nome!
  - Meu corpo anseia tudo que é teu. E tudo que você tem fui eu quem desenhou.
  - E toda vontade e todo desejo me leva pros braços teus, pros braços meus, pra qualquer saudade morrer.
E ela estava mesmo ensopada. Como quem sai do banho sem aparo nenhum e o líquido é parte do corpo também, um rastro de si no caminho. E ele se fazia como devia ser, detentor de todo poder (concedido). Uma tonicidade que emergia de cada poro, de cada tato. Ao fundo, as palavras sempre bailavam com a sedução do nu e do velado. Era também amor, como não podia deixar de ser. Afinal, como não amar a quem nos faz liberdade?
O medo rondava por ali, cercando os dois vez por outra. É que aquela relação sempre tivera muito mais do não dito, do inominável, do livre, do que qualquer outra coisa. Era submundo para eles também. Por isso, às vezes enroscavam seus corpos num abraço inteiro buscando preencher-se um com o outro. E o silêncio era quem mais falava as verdades temíveis.
  - Ata-me!
 Fora dali, não mais que transeuntes, conhecidos, colegas e até amigos. O mundo dos homens permite muito menos que o das verdades. E eles eram vazão! Mas aqui, na vida de todo dia, todo mundo é e faz tudo sempre igual. E a gente segue se esbarrando por aí, sem saber além da imaginação quantos submundos se criam e quanta gente se faz em outra história no silêncio do que não se vê.
  - Eu te atravesso! - ouviu ela um murmúrio ao pé do ouvido.
  - Eu te atravesso.




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