domingo, 5 de abril de 2020

Ah, os românticos... ou porque vi "Diário de uma paixão"

Pense num drama! Num desses beeemmm dramáticos e que envolva amor entre um homem e uma mulher. Vai ter paixão à primeira vista? Vai! Vai ter proibição? Sim, senhora! Vai ter conspiração? Não poderia faltar... Tem sacrifício? Mais é claro! Tem morte? Tem que ter morte, né? De novo, sim! E, o amor supera tudo? Certamente! Então, tem "felizes para sempre"? Não podia faltar! Espera! É um conto de fadas? Branca de neve, talvez? Antes fosse... É um filme para adultos. Sério? Vai me dizer que você nunca viu uma comédia romântica? Esse é igual, só não tem a comédia.

A trama é a seguinte: dois velhinhos num asilo, o homem lê para a mulher uma história de um livro. Ele parece fazer esse gesto como uma forma de ajudá-la a passar o tempo ali naquele espaço. Ela parece apreciar o gesto e, curiosa, se interessa pela história narrada. A história que ele narra envolve uma mocinha rica de férias numa cidade pequena e um rapaz pobre trabalhador, mas sonhador. Quando o mocinho a vê, é paixão à primeira vista. E ele faz estripulhias para ela lhe dar uma chance. Ela cede. Logo os dois estão perdidamente apaixonados e vivendo um tórrido romance naquele verão. Os pais da mocinha, percebendo que a coisa está ficando séria, intervém. Os dois são separados, ela é levada de volta para a cidade grande. O mocinho escreve cartas de amor ao longo do primeiro ano de separação, uma por dia. A mãe da mocinha intervém mais uma vez. A vida segue, a guerra chega, a guerra passa. A mocinha se apaixona por um novo mocinho, que é aprovado pela família. O nosso mocinho do início continua com sua antiga paixão intacta e não podendo realizá-la, ele se dedica a reconstrução de um casarão, sonho antigo que tinha sido atualizado naquele verão apaixonante. A casa fica pronta, como os dois sonharam um dia, mas não preenche o seu vazio. A mocinha está prestes a se casar. Mas o destino intervém. Ele descobre ela e seu novo amor, então deixa pra lá. Logo depois, ela descobre ele e resolve ir atrás, tirar o passado a limpo antes de prosseguir com seus planos. Preciso dizer que eles revivem toda a paixão de novo? Ela tem que escolher com quem vai ficar. E a gente descobre a escolha dela junto com a velhinha do asilo que se lembra que os personagens da história são ela própria e seu marido. Antes disso, nós já sabemos que a velhinha é casada com o velhinho, que eles tem uma linda família com filhos e netos, mas que ela sofre de demência e já nãoo reconhece ninguém. O filme termina com os dois morrendo juntos, um ao lado do outro, no asilo.

Já enxugou as lágrimas? 

Sem querer parecer insensível, mas essas histórias me irritam. Real, oficial. E me irritam porque elas nos dizem um monte de coisas que só atrapalham na vida real. A primeira delas é que o amor é fruto de mágica, que exige sacrifícios, mas que sempre vence no final. A segunda é que só teremos o nosso felizes para sempre se encontrarmos quem nos complete. A terceira é que se for por amor, todo sacrifício vale a pena. 

Essa visão só nos concebe como parte de um todo, formado por duas pessoas. Mas veja bem! A gente se cria e vira gente como nós mesmos, como um. A nossa individualidade se forma a parrtir da nossa relação com os outros e não por causa dos outros. Ou seja, a maior parte da nossa vida a gente se desenvolve como um. São os nossos desejos, nossos sonhos, nossas carências. Não é a minha e de alguém estranho que aindda nem conheço. Ninguém é criado para esperar conhecer um outro específico para saber do que vai gostar, o que vai querer. E é por isso que os romances quase sempre exigem sacrifícios. Porque quando a gente coonhece alguém que nos interessa, não podemos simplesmente pegar tudo o que nos formou e jogar no lixo. Mas o discurso de que a gente s´o se commpleta com esse outro, nos obriga a abrir mão de parte de nós para ceder ao outro aquilo que acreditto que deva me completar. Percebem a complexidade disso? Porque as coisas que nos formam e nos formaram não são destacáveis e descartáveis como peças de roupas, não podemos simplesmente tirá-las e jogá-las fora. O que nós fazemos é o sacrifício inocente de reprimir parte de quem a gente é para "completar" o outro. Eu não sei se você sabe mas repressão é uma forma de violência. Não há um significado dessa palavra que não incorpore esse caráter. Então, esse ideal de amor concebe que uma dosezinha de violência faz parte. E quem é que vai medir a dose? As pessoas que estão se relacionando, ora bolas! Ah, então é simples porque as pessoas podem combinar que a dose vai ser pequena. Verdade! Elas podem. Mas quero lembrá-los que as pessoas que se relacionam não estão em posições iguais, que a sociedade definiu para cada uma posições diferentes de poder. Então, ao fim quem vai estabelecer a dose é quem tem mais poder. Pessoas, não é por acaso que relacionamenttos abusivos existem.

Um outro peso nesse ideal é essa ideia de recompensa. O amor vai fazer valer a pena. Então, a relação é toda baseada numa relação de troca e na expectativa de algo a se cumprir. Outro peso é que a nossa felicidade depende disso, depende de que dê certo. Só há possibilidade para sermos felizes numa relação em que eu suprimo parte de mim, de acordo com medidas que podem variar, e espero ser recompensado por isso.

Gente, é sério? Segunda década do segundo milênio d. C. e a gente ainda está achando bonita uma relação assim?

Eu vi o filme porque uma das pessoas que eu namorei na juventude me pediu para vê-lo e me disse que havia muito de nós no filme. Eu presumi que o filme fosse ter um tanto desse ideário de amor, mas não esperava que fosse esse pacote completo de drama. E passei o filme me perguntando "onde diabos nós estávamos ali?". Num resumão da nossa relação: nós dois éramos pobres, não houve impedimento externo para nossa relação e tampouco houve um sacrifício.

Ao longo da minha infância e adolescência eu sonhava com esse amor, esse que me levaria a um felizes para sempre. Eu era romântica, às vezes estupidamente romântica. Para se ter uma ideia: uma vez andando na rua esbarrei sem querer num cara e nosso esbarrão foi um em que nossos ombros se chocaram, nossos braços seguiram mais suave ao choque inicial e como seguíamos em direções opostas, nossos braços deslizaram um sobre o outro até nossas mãos se soltarem. Para mim aquele esbarrão foi como cena de filme. Nós tínhamos nos olhado nos olhos enquanto tudo acontecia... Eu logo criei uma linda de história de amor na minha cabeça que começou com aquele esbarrão. Eu, hoje, não lembro nada do rosto daquele cara, mas lembro da cena em câmera lenta. Perceberam as afetações? Pois bem, eu era romântica assim, tudo o que eu queria era me sentir amada. E eu só me sentia o patinho feio. Quem nunca?

Apesar disso, eu percebi logo cedo que há muito mais coisa em jogo. E mesmo sendo uma adolescente romântica eu sabia que há sacrifícios que não compensam. Porque quando a gente abre mão de parte do que somos, do que queremos, nós podemos nunca mais recuperar de volta. Na minha família não faltava exemplos de mocinhas bem criadas que na busca pelo felizes para sempre sofreram violência, deram passos que mudaram a vida delas para sempre. 

Ao longo da minha vida eu consegui em muitos momentos fazer escolhas que não me colocassem nesse lugar do sacrifício. Apesar disso, sem perceber eu sucumbi a esse ideário de amor em algum momento. E o que eu aprendi com essa experiência é que a gente precisa criar novos modelos de amar que não presumem sacrifício, repressão, violência, medo da solidão. Amar deve ser algo que a gente cria na relação com o outro por quem nós somos individualmente e em parceria, que presuma sempre a liberdade de ser e a certeza de que a felicidade é algo que só pode existir quando há amor próprio.

Então, não. Não sou a mocinha do filme. Não era antes e não sou agora. Não me chamem de menina, de garota, de moça. Eu sou uma mulher que acredita e busca construir o amor como um espaço em que a gente se sinta feliz por ser quem se é. Nada menos que isso.



Ao meu querido ex, sinto muito mas eu não participei desse filme.



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